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quarta-feira, 7 de julho de 2021

Agricultura Familiar - Parte 3 - Do caipira da roça ao gestor da da unidade familiar de produção agrária

Adilson D. Paschoal 

Professor Titular - Sênior da Esalq-USP 


Terminologia

Longe vai o tempo em que o pequeno agricultor (hoje agricultor familiar), sobretudo em São Paulo, podia ser taxado de “Jeca-Tatu” (Monteiro Lobato, em “Urupês”), de “Joaquim Bentinho” (Cornélio Pires, em seus livros), de “Caipira” (Almeida Júnior, em seu quadro; do paulistano, para caracterizar os habitantes do interior) e de  “Jeca” (Amácio Mazzaropi, em seus filmes). De fato, o pequeno produtor ou produtor de subsistência, como se conhecia no passado, era o agricultor que vivia em condições precárias, alguns de extrema pobreza e ignorância. "O Jeca Tatu não é assim, ele está assim", dizia Monteiro Lobato, culpando a indiferença do poder público pelo  atraso econômico e educacional do homem do campo. Abandonado, desacreditado e ridicularizado pela forma com que conduzia a agricultura e a criação animal em suas roças, sem ter acesso ao sistema de crédito rural e à assistência técnica especializada, utilizava processos produtivos rudimentares e, por isso, não conseguia integrar-se no mercado cada vez mais competitivo, técnico e mecanizado, sobretudo depois do advento da Revolução Verde, que, no Brasil, implantou-se nas décadas de 1960 e 1970.    

Até 1995, expressões como “agricultura campesina”, “agricultura de subsistência”, “pequena produção”,  “agricultura de baixa renda”, “agricultura tradicional” e “agricultura de fundo de quintal” eram comumente usadas no país. A expressão “agricultura familiar” é, pois,  recente no Brasil. Embora seja verdadeiro que um número considerável de unidades dessa natureza esteja atualmente em condição precária no país, máxime no Nordeste, não mais se pode caracterizar a agricultura familiar atual com os atributos do passado, pois houve grande desenvolvimento dessas unidades nos últimos anos no Brasil, bem como em outros países, desenvolvidos e em desenvolvimento.                

Que é agricultura familiar? 

A definição de agricultura familiar varia entre países e contextos. A maioria reconhece o papel do trabalho familiar e o papel da família no gerenciamento da operação da propriedade rural. Contudo, o conceito vai além da capacidade, tamanho e orientação da agricultura. O termo também inclui, além do econômico, objetivos ecológicos, sociais e culturais. A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) assim a define: “Agricultura Familiar é um meio de organização da produção agrícola, florestal, pesqueira, pastoril e aquícola gerida e explorada por uma família e que depende predominantemente da mão de obra familiar, tanto masculina como feminina. A família e a fazenda estão ligadas, coevolvem e combinam funções econômicas, ambientes, reprodutivas, sociais e culturais.” (FAO, 2015).  

São três as características da agricultura familiar, segundo o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra):  a) a gestão da propriedade e os investimentos nela realizados são feitos por indivíduos relacionados por laços de sangue ou de matrimônio; b) a maior parte do trabalho é fornecida pelos membros da família; e, c) a propriedade dos meios de produção pertence à família e é em seu interior que se realiza sua transmissão em caso de falecimento ou de aposentadoria dos responsáveis pela unidade produtiva. A relação entre esses três fatores diferencia a agricultura familiar das outras formas de agricultura.  

No Brasil, a agricultura familiar é definida pelo artigo terceiro da Lei nº 11.326, de 24 de julho de 2006. Art. 3º:  Para os efeitos desta Lei, considera-se agricultor familiar e empreendedor familiar rural aquele que pratica atividades no meio rural, atendendo, simultaneamente, aos seguintes requisitos: I - não detenha, a qualquer título, área maior do que 4 (quatro) módulos fiscais; II - utilize predominantemente mão de obra da própria família nas atividades econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento; III - tenha percentual mínimo da renda familiar originada de atividades econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento, na forma definida pelo Poder Executivo;  IV - dirija seu estabelecimento ou empreendimento com sua família. 

Observa-se no item II do artigo 3º que a lei não impede que pessoas fora aquelas da família possam trabalhar na propriedade familiar como assalariadas temporárias,  uma vez que diz utilizar “predominantemente” mão de obra da própria família. Com a modernização da agricultura familiar em regiões do país, máxime no Sul e no Sudeste, a contratação de mão de obra extra, necessária à ampliação dos negócios familiares,  permite aumentos da renda familiar e da oferta de produtos para consumo interno ou para o mercado externo. A era da produção agrícola familiar para consumo próprio, ideológica e pouco técnica no passado, está cedendo rapidamente lugar para uma forma de agricultura familiar de base econômica, com forte tendência para a observação das questões ecológicas, sociais e culturais da era atual.


        

Os benefícios da Lei nº 11.326 estendem-se também aos silvicultores que cultivem florestas nativas ou exóticas e que promovam o manejo sustentável desse ambientes; aos agricultores que explorem reservatórios hídricos com superfície total de até dois hectares ou ocupem até quinhentos metros cúbicos de água quando a exploração se efetivar em tanques-rede; aos extrativistas que exerçam essa atividade artesanalmente no meio rural, excluídos os garimpeiros e faiscadores; aos pescadores que exerçam a atividade pesqueira artesanalmente. Inclui povos e comunidades tradicionais e assentados da reforma agrária. 


Unidade Familiar de Produção Agrária (UFPA)

O Decreto no. 9.064, de 31 de maio de 2017, dispõe sobre a Unidade Familiar de Produção Agrária (UFPA), institui o Cadastro Nacional da Agricultura Familiar (CAF) e regulamenta a Lei no. 11.326, de 2006.  

Segundo o decreto, Unidade Familiar de Produção Agrária é o conjunto de indivíduos composto por família que explore uma combinação de fatores de produção, com a finalidade de atender à própria subsistência e á demanda da sociedade por outros bens e serviços, e que resida no estabelecimento ou em local próximo a ele. Família é a unidade nuclear composta por um ou mais indivíduos, eventualmente ampliada por outros que contribuam para o rendimento ou que tenham suas despesas atendidas pela UFPA. Estabelecimento é a unidade territorial, contígua ou não, à disposição da UFPA, sob as formas de domínio ou posse admitidas em lei. Módulo fiscal é a unidade de medida agrária para classificação fundiária do imóvel, expressa em hectares, a qual poderá variar conforme o Município, calculada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária,  Incra. Imóvel agrário é a área contínua, qualquer que seja a sua localização, destinada à atividade agrária. Empreendimento familiar rural  é a forma associativa ou individual da agricultura familiar instituída por pessoa jurídica (empresa familiar rural; cooperativa singular da agricultura familiar; cooperativa central da agricultura familiar; e associação da agricultura familiar).   

        É considerada Unidade Familiar de Produção Agrária o empreendimento familiar rural que: a) possuir, a qualquer título, área de até quatro módulos fiscais; b) utilizar, no mínimo, metade da força de trabalho familiar no processo produtivo e de geração de renda; c) auferir, no mínimo, metade da renda familiar de atividades econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento; e d) ser a gestão do estabelecimento ou do empreendimento estritamente familiar.  

Evolução histórica

A agricultura familiar brasileira evolveu ao longo de seis séculos, desde o inicio da colonização portuguesa, sendo marcada por três características marcantes: a grande propriedade rural, as monoculturas de exportação e a escravatura, que definiram a sua base econômica e as características de seus proprietários.  A modernização da agricultura a partir dos anos 1950 (Revolução Verde, que no Brasil se consolida nas duas décadas seguintes), a globalização e os avanços tecnológicos iniciados por volta de 1990 alteraram significativamente os padrões operacionais das unidades produtivas familiares e a relação delas com a economia, a sociedade e a natureza.  

Dentre os aspectos negativos da modernização está o êxodo rural. A mecanização do processo produtivo tornou possível que as atividades antes executadas por grande número de agricultores passassem a ser realizadas por poucas pessoas, gerando  milhares de  desempregados no campo, que não tiveram outra opção senão a cidade. Altera também a organização do trabalho familiar, pois o que era atividade de toda a família passa a ser executado por apenas uma pessoa. A modernização da agricultura e os programas excludentes de incentivos fiscais e de fomento e assistência técnica foram também responsáveis por inviabilizar a pequena produção no passado, quer pela restrita competitividade, quer pelo baixo poder de barganha (poder de decisão dos compradores sobre os atributos do produto, principalmente quanto a preço e qualidade) das propriedades familiares, obrigando muitos produtores a venderem suas terras mudando-se para as cidades ou a viverem em condições subumanas, utilizando tecnologias rudimentares e destinando grande parte da produção para o consumo familiar. 

Para uma parte dos agricultores familiares atuais a permanência no campo representa forma de resistência à modernização da agricultura, altamente técnica, poluidora e não sustentável, o que explica a adoção de práticas agroecológicas, sustentáveis por longo prazo e que permitem maior renda familiar. Para outra parte, a fixação à terra significa adaptação ao processo desenvolvimentista e globalizado, puramente econômico, razão de adotarem práticas convencionais de agricultura e de criação animal. Dentro desse grupo, há aqueles que fazem  uso de  técnicas sustentáveis visando agregar práticas conservacionistas ao aspecto econômico, como a recuperação de áreas degradadas (solo, mananciais, cobertura vegetal, flora e fauna), a integração agricultura-pecuária-floresta, o policultivo, o uso de variedades e raças resistentes e rústicas, o controle biológico, bem como de valorização cultural e social (educação, tradições, cooperativas entre outras).  

 

 Nota: No próximo artigo tratarei do módulo fiscal e da importância da agricultura familiar.  

 

Referência: 

PASCHOAL, A.D. História Ilustrada da Agricultura. Seis séculos de agricultura no Brasil. Edição comemorativa dos 120 anos da Esalq e dos 200 anos da Independência do Brasil. 550 p. aprox. Em revisão, para publicação. 


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