Adilson D. Paschoal
Professor Sênior da Esalq-USP
Século XIX. Segunda metade. De Santos a São Paulo pela impressionante estrada de ferro São Paulo Railway. Na hospedaria dos imigrantes. Núcleos Coloniais. O progresso chega (finalmente) à capital dos paulistas. Os primeiros e difíceis tempos dos que para cá migraram.
Para os imigrantes que chegavam ao porto de Santos, vindos da Europa para trabalharem em fazendas de café no interior paulista, só havia um caminho a seguir: o da estrada de ferro São Paulo Railway. Inaugurada em 1867, a “Inglesa” ligava Santos a São Paulo, seguindo depois a Jundiai, seu ponto final. A lenta e perigosa subida, em meio à densa mata, causa a impressão de se estar em plena selva, repleta de bichos ferozes. Giuseppe, que vinha em um dos vagões, tenta abrir a janela junto a seu acento, mas ela não abre. Mais tarde ficaria sabendo a razão disso. Era tal o medo dos imigrantes com a selva que os envolvia na viagem que não raras vezes se jogassem pelas janelas do trem, na tentativa de retornarem a Santos. Não achavam possível haver cidade no meio daquela mata. Após vários incidentes, a São Paulo Railway mandou travar os vidros do comboio, para evitar fugas.
Vencido pelo cansaço e pela incerteza, desembarca ele na última estação ferroviária, onde vê seus compatriotas abrirem as bagagens para tomarem sol e amenizar o mofo. Observa que além de roupas eles traziam louças, talheres, máquinas de costura, instrumentos musicais e de trabalho, objetos de toucador, fotografias, relíquias de família e peças que lembravam a terra natal. Aloja-se na Hospedaria dos Imigrantes, onde recebe alimentação, vacina e medicamentos, aí permanecendo por oito dias, prazo suficiente para que obtivesse informações para aonde ir. A hospedaria tinha capacidade para receber três mil pessoas, chegando a acolher oito mil. Nela, os recém chegados eram registrados nos Livros de Registro de Imigrantes ou Livros de Matrículas, o primeiro dos quais data de 1882. Em tais livros, discriminava-se o nome da fazenda, do proprietário, da estação ferroviária e do município, ou do Núcleo Colonial a que se destinava o imigrante.
Na Hospedaria dos Imigrantes era dada aos estrangeiros a oportunidade de trabalharem nos Núcleos Coloniais, frequentemente instalados em terras devolutas, que o Estado pretendia tornar producentes. Aí poderiam adquirir lotes e trabalhar a terra para o seu sustento. Muitos italianos e espanhóis já haviam se instalado nesses núcleos. Em 1895, porém, o secretário da agricultura de São Paulo queixava-se de que os núcleos não vinham tendo os resultados esperados, e o motivo era que aos imigrantes não interessava a aquisição de terras no Brasil, senão apenas a obtenção de dinheiro, via trabalho, para empregá-lo em sua terra natal.
A cidade de São Paulo passara por notável desenvolvimento nas últimas décadas do século XIX, modernizando-se graças à riqueza trazida pelo café. No ano 1872, a cidade passa a ser iluminada por lampiões a gás, o transporte de passageiros passa a ter bondes tracionados por burros e a primeira fábrica de tecidos é inaugurada. A grande migração, iniciada em 1887, trouxera 32 mil imigrantes nesse ano, contra 9.500 no ano anterior, a Hospedaria dos Imigrantes sendo inaugurada nesse mesmo ano. Os primeiros telefones aparecem em 1884. Em 1891, é inaugurada a avenida Paulista, que, diferentemente do bairro dos Campos Elíseos, exclusivo da aristocracia cafeeira, tinha além de grandes proprietários de fazendas no interior paulista também imigrantes e pioneiros do setor industrial. A companhia Matarazzo é desse ano. Em 1893, havia 71.468 estrangeiros na cidade, correspondendo a quase 55% da população. A Escola Politécnica é criada em 1894, no bairro da Luz, assim como o primeiro grupo escolar da cidade. Os primeiros bondes elétricos passam a correr em 1900.
Ainda na hospedaria, Giuseppe fica conhecendo uma família de italianos que ia se empregar em fazenda de café de São João da Boa Vista, terra que, segundo lhe disseram, tinha montanhas como em sua já saudosa Calábria, e com ela resolve seguir. Para os imigrantes que iam para essa cidade, o caminho era de trem da Estação da Luz, em São Paulo, até Jundiaí, pela Estrada de Ferro São Paulo Railway, e daí para Campinas, pela Companhia Paulista, e, finalmente, de Campinas a São João, passando por Mogi Mirim e Mogi Guaçu, pela Companhia Mogiana. Para quem se diria para o Oeste a estrada de ferro era a Mogiana, de Campinas a Ribeirão Preto.
Desde meados do século XIX havia fazendas de café nas imediações de São João. O solo fértil e as encostas montanhosas eram muito favoráveis ao cultivo da rubiácea. A partir de 1880, a produção torna-se extensiva, produzindo-se também fumo, cana, algodão e gado leiteiro. A fazenda Fortaleza é a primeira a receber mudas de café. O muro de adobe, coberto por telhões, é testemunho desta fase, cercando um dos maiores terreiros de café da região. Outra fazenda é Cachoeira, cuja sede, de mais de quarenta cômodos, foi construída em 1871.
Os primeiro tempos dos imigrantes foram tempos difíceis. O destino a que estavam fadados no Brasil era praticamente tão sombrio quanto o que haviam deixado atrás. Um funcionário do governo italiano assim deixou registrado: “Achar um patrão humano e razoável é uma combinação muito rara, algo como ganhar um prêmio na loteria.” “Vendas” da própria fazenda, confiscos diretos, multas, pesos e medidas ilegais e o mero não pagamento de salários eram mecanismos usados pelos fazendeiros, com considerável frequência, além de violências e arbitrariedades
cometidas pelos capangas. Embora as condições de alimentação em São Paulo fossem melhores do que na Itália e na Espanha, as moradias destinadas aos colonos eram tão precárias como as de lá e as condições sanitárias piores. Isolados, desumanizados, sem escolas e sem as compensações e o estímulo oferecidos pela vida comunitária em seus países, os imigrantes sofrem regressão cultural; doenças mentais e alcoolismo são outros problemas que os acometem.
Sem ter acesso à terra, exceto em pouquíssimos casos, muitos, em desespero, migram para a Argentina e para o Uruguai, ou voltam para a Itália e a Espanha. Mais da metade dos que entravam saia. Em 1896, Campos Salles, então Presidente de São Paulo, disse: “Fazer os estrangeiros proprietários do solo paulista não nos convém”.
Mais tarde, em 1902, o governo italiano proíbe a emigração subsidiada para São Paulo. Os fazendeiros voltam-se para Portugal e Espanha, de mão de obra barata. Em 1910, porém, o governo espanhol também proíbe a emigração subsidiada de seus cidadãos. A solução vem com trabalhadores japoneses, requisitados desde então.
Nem todos os trabalhadores que fugiam das condições existentes nas fazendas deixavam o país. Número considerável vai para a cidade de São Paulo, para trabalho em indústrias ou na construção civil, onde eram pagos geralmente em nível de subsistência, aglomerando-se em miseráveis cortiços, destituídos de qualquer legislação social efetiva, e sujeitos a crises periódicas de desemprego.
Esta primeira geração da classe operária paulistana era composta quase totalmente de imigrantes europeus. No começo, estimava-se que oitenta por cento ou mais dos operários de São Paulo eram italianos, a maior parte proveniente de áreas rurais. Fato semelhante ocorre também no interior de São Paulo, onde muitos imigrantes deixam o campo para viverem do comércio nas cidades. Outros sequer vieram para o interior paulista para trabalhar nas fazendas de café; muitos foram os casos, inclusive o de Giuseppe di Paschoal. Assim que chega a São João, abre um empório de secos e molhados, com completo sortimento de louças, ferragens, armarinhos, chapéus, açúcar, querosene, aguardente, sal, vinhos de todas as qualidades, vendendo produtos importados, como bacalhau, azeite e azeitona. Eram tantas as famílias alemãs e suecas no município, que ele instala uma fábrica de cerveja, destacando-se como empresário no ramo de cervejaria, assim como Ângelo Polachi, Thomazo Biello, Emilio Vaiss e Daniel Ricken.
Seja como for, os italianos e seus descendentes ítalo-brasileiros, os oriundi, formaram a maior colônia fora da Itália, metade dela em São Paulo, legando notável contribuição socioeconômica ao Brasil, tanto no campo como nas cidades. Na agricultura, introduzem novas técnicas e quebram a tradição centenária do latifúndio, das plantations, passando à produção em pequenas e médias propriedades agrícolas, diversificadas de produtos.
Continua.
Referência.
Paschoal, A.D. História de uma família. Genealogia à luz da história. Tomo II.
Séculos XIX e XX. 403 p. Piracicaba, 2010.
Vencido pelo cansaço e pela incerteza, desembarca ele na última estação ferroviária, onde vê seus compatriotas abrirem as bagagens para tomarem sol e amenizar o mofo. Observa que além de roupas eles traziam louças, talheres, máquinas de costura, instrumentos musicais e de trabalho, objetos de toucador, fotografias, relíquias de família e peças que lembravam a terra natal. Aloja-se na Hospedaria dos Imigrantes, onde recebe alimentação, vacina e medicamentos, aí permanecendo por oito dias, prazo suficiente para que obtivesse informações para aonde ir. A hospedaria tinha capacidade para receber três mil pessoas, chegando a acolher oito mil. Nela, os recém chegados eram registrados nos Livros de Registro de Imigrantes ou Livros de Matrículas, o primeiro dos quais data de 1882. Em tais livros, discriminava-se o nome da fazenda, do proprietário, da estação ferroviária e do município, ou do Núcleo Colonial a que se destinava o imigrante.
Na Hospedaria dos Imigrantes era dada aos estrangeiros a oportunidade de trabalharem nos Núcleos Coloniais, frequentemente instalados em terras devolutas, que o Estado pretendia tornar producentes. Aí poderiam adquirir lotes e trabalhar a terra para o seu sustento. Muitos italianos e espanhóis já haviam se instalado nesses núcleos. Em 1895, porém, o secretário da agricultura de São Paulo queixava-se de que os núcleos não vinham tendo os resultados esperados, e o motivo era que aos imigrantes não interessava a aquisição de terras no Brasil, senão apenas a obtenção de dinheiro, via trabalho, para empregá-lo em sua terra natal.
A cidade de São Paulo passara por notável desenvolvimento nas últimas décadas do século XIX, modernizando-se graças à riqueza trazida pelo café. No ano 1872, a cidade passa a ser iluminada por lampiões a gás, o transporte de passageiros passa a ter bondes tracionados por burros e a primeira fábrica de tecidos é inaugurada. A grande migração, iniciada em 1887, trouxera 32 mil imigrantes nesse ano, contra 9.500 no ano anterior, a Hospedaria dos Imigrantes sendo inaugurada nesse mesmo ano. Os primeiros telefones aparecem em 1884. Em 1891, é inaugurada a avenida Paulista, que, diferentemente do bairro dos Campos Elíseos, exclusivo da aristocracia cafeeira, tinha além de grandes proprietários de fazendas no interior paulista também imigrantes e pioneiros do setor industrial. A companhia Matarazzo é desse ano. Em 1893, havia 71.468 estrangeiros na cidade, correspondendo a quase 55% da população. A Escola Politécnica é criada em 1894, no bairro da Luz, assim como o primeiro grupo escolar da cidade. Os primeiros bondes elétricos passam a correr em 1900.
Ainda na hospedaria, Giuseppe fica conhecendo uma família de italianos que ia se empregar em fazenda de café de São João da Boa Vista, terra que, segundo lhe disseram, tinha montanhas como em sua já saudosa Calábria, e com ela resolve seguir. Para os imigrantes que iam para essa cidade, o caminho era de trem da Estação da Luz, em São Paulo, até Jundiaí, pela Estrada de Ferro São Paulo Railway, e daí para Campinas, pela Companhia Paulista, e, finalmente, de Campinas a São João, passando por Mogi Mirim e Mogi Guaçu, pela Companhia Mogiana. Para quem se diria para o Oeste a estrada de ferro era a Mogiana, de Campinas a Ribeirão Preto.
Desde meados do século XIX havia fazendas de café nas imediações de São João. O solo fértil e as encostas montanhosas eram muito favoráveis ao cultivo da rubiácea. A partir de 1880, a produção torna-se extensiva, produzindo-se também fumo, cana, algodão e gado leiteiro. A fazenda Fortaleza é a primeira a receber mudas de café. O muro de adobe, coberto por telhões, é testemunho desta fase, cercando um dos maiores terreiros de café da região. Outra fazenda é Cachoeira, cuja sede, de mais de quarenta cômodos, foi construída em 1871.
Os primeiro tempos dos imigrantes foram tempos difíceis. O destino a que estavam fadados no Brasil era praticamente tão sombrio quanto o que haviam deixado atrás. Um funcionário do governo italiano assim deixou registrado: “Achar um patrão humano e razoável é uma combinação muito rara, algo como ganhar um prêmio na loteria.” “Vendas” da própria fazenda, confiscos diretos, multas, pesos e medidas ilegais e o mero não pagamento de salários eram mecanismos usados pelos fazendeiros, com considerável frequência, além de violências e arbitrariedades
cometidas pelos capangas. Embora as condições de alimentação em São Paulo fossem melhores do que na Itália e na Espanha, as moradias destinadas aos colonos eram tão precárias como as de lá e as condições sanitárias piores. Isolados, desumanizados, sem escolas e sem as compensações e o estímulo oferecidos pela vida comunitária em seus países, os imigrantes sofrem regressão cultural; doenças mentais e alcoolismo são outros problemas que os acometem.
Sem ter acesso à terra, exceto em pouquíssimos casos, muitos, em desespero, migram para a Argentina e para o Uruguai, ou voltam para a Itália e a Espanha. Mais da metade dos que entravam saia. Em 1896, Campos Salles, então Presidente de São Paulo, disse: “Fazer os estrangeiros proprietários do solo paulista não nos convém”.
Mais tarde, em 1902, o governo italiano proíbe a emigração subsidiada para São Paulo. Os fazendeiros voltam-se para Portugal e Espanha, de mão de obra barata. Em 1910, porém, o governo espanhol também proíbe a emigração subsidiada de seus cidadãos. A solução vem com trabalhadores japoneses, requisitados desde então.
Nem todos os trabalhadores que fugiam das condições existentes nas fazendas deixavam o país. Número considerável vai para a cidade de São Paulo, para trabalho em indústrias ou na construção civil, onde eram pagos geralmente em nível de subsistência, aglomerando-se em miseráveis cortiços, destituídos de qualquer legislação social efetiva, e sujeitos a crises periódicas de desemprego.
Esta primeira geração da classe operária paulistana era composta quase totalmente de imigrantes europeus. No começo, estimava-se que oitenta por cento ou mais dos operários de São Paulo eram italianos, a maior parte proveniente de áreas rurais. Fato semelhante ocorre também no interior de São Paulo, onde muitos imigrantes deixam o campo para viverem do comércio nas cidades. Outros sequer vieram para o interior paulista para trabalhar nas fazendas de café; muitos foram os casos, inclusive o de Giuseppe di Paschoal. Assim que chega a São João, abre um empório de secos e molhados, com completo sortimento de louças, ferragens, armarinhos, chapéus, açúcar, querosene, aguardente, sal, vinhos de todas as qualidades, vendendo produtos importados, como bacalhau, azeite e azeitona. Eram tantas as famílias alemãs e suecas no município, que ele instala uma fábrica de cerveja, destacando-se como empresário no ramo de cervejaria, assim como Ângelo Polachi, Thomazo Biello, Emilio Vaiss e Daniel Ricken.
Seja como for, os italianos e seus descendentes ítalo-brasileiros, os oriundi, formaram a maior colônia fora da Itália, metade dela em São Paulo, legando notável contribuição socioeconômica ao Brasil, tanto no campo como nas cidades. Na agricultura, introduzem novas técnicas e quebram a tradição centenária do latifúndio, das plantations, passando à produção em pequenas e médias propriedades agrícolas, diversificadas de produtos.
Continua.
Referência.
Paschoal, A.D. História de uma família. Genealogia à luz da história. Tomo II.
Séculos XIX e XX. 403 p. Piracicaba, 2010.