120 ANOS DEPOIS
O depoimento de Davenport, porém, escrito na forma de um diário e complementado anos mais tarde (em 1936, quando ele completara 80 anos), ficou inédito e está conservado nos arquivos da biblioteca do campus de "Urbana-Champaign" da "University of Illinois". Tudo indica que ele o escreveu na forma de um diário, pois há muitas referências a "aqui", citações sobre "este País", e o complementou mais tarde, provavelmente prevendo publicar um livro que acabou nunca sendo editado.
Casado com Emma Davenport, que também escreveu um texto inédito sobre o que encontrou no tão estranho País tropical, Davenport foi convidado por Luiz Vicente de Souza Queiroz a vir ao Brasil em 1891, para colaborar na construção e para posteriormente dirigir o que viria a ser um dia a "Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz", hoje integrada à Universidade de São Paulo.
Quando, porém, as forças políticas adversas, principalmente os escravagistas, sempre foram críticos e inimigos do abolicionista radical Luiz de Queiroz, tornaram inviável a construção da escola, e o mecenas exauriu todos os imensos recursos que tinha sem conseguir terminar a tarefa, Davenport regressou com a família aos Estados Unidos.
É pobre o testemunho de Davenport a respeito da construção da "Esalq", que na realidade só seria inaugurada anos depois de sua volta aos Estados Unidos.
O que torna o depoimento ímpar e valioso é a descrição detalhada de costumes, a visão sociológica do professor, registrando fatos do dia a dia que escaparam ou talvez não tenham chegado ao conhecimento dos viajantes que o antecederam e seu testemunho de que os graves defeitos do brasileiro que ainda hoje são tão criticados, tem origem histórica, já eram os mesmos há mais de um século.
A descrição da chegada de uma carroça com eixo moderno ao Brasil e a recusa terminante do lavrador negro liberto de experimentar a engenhoca, pois o feiticeiro da fazenda garantia que o equipamento estava amaldiçoado, pois não fazia o gemido típico dos carros de boi, nos coloca diante de um matiz desconhecido do relacionamento entre patrão e empregado no Brasil rural de então e, mais importante, mostra a desistência acomodatícia de Luiz de Queiroz o qual, diante da recusa do trabalhador, simplesmente desiste de mostrar os predicados da máquina.
Foi tão pungente a experiência de Davenport no Brasil em todos os sentidos que, ao revisar seu texto, já entrado em anos, escreveu que o que mais gostaria naquele momento, no seu então gelado e nevado Michigan, seria ter diante de si "uma panela cheinha de jaboticabas", aquela frutinha que aprendeu ser mais saborosa quando, despindo-se de seus sóbrios pruridos anglo-saxônicos, ele comia trepado na árvore calças arregaçadas, cuspindo os caroços para longe, voltando à infância num repente, transformado num Tom Sawyer redivivo, ou melhor, deixando aflorar a personalidade de um insuspeitado curumin tupiniquim. E essa saudade da jaboticaba, uma marca brasileira na alma do professor, o perseguiu pela vida afora, pois então já maduro, em pleno século XX, ele revia o texto rascunhado em 1891/92, quando tinha 35 anos, e que entregaria à guarda da Universidade 40 anos depois, em 1921.
É curioso notar como as frutas tropicais marcaram indelevelmente os estrangeiros que nos visitaram. Também o antropologista Levy Strauss, que desembarcou em São Paulo 50 anos depois de ter deixado a cidade onde ajudara a criar a Universidade de São Paulo pediu a mim, que fazia as vezes de cicerone que, antes de visitarmos a USP, passasse pela rua Cincinatô Brragá, dizia ele, para ver na casinha que alugou no início do século e onde se reunia com os demais integrantes da "Missão Francesa", Fernand Braudel, Roger Bastide, Paul Arbousse e Pierre Monbeig. O motivo, queria rever e talvez provar do fruto de certo "pé de carrambolá, que ainda dá saudade"
O pai do estruturalismo não conseguiu rever suas carambolas nem o sobradinho onde rascunhou os "Tristes Trópicos". Primeiro, assustou-se com o imenso congestionamento que encontrou na avenida Paulista, e depois não achou uma casa que fosse no quarteirão onde viveu nos anos em 1935. Pela rua inteira tinham brotado imensos prédios e na mente do cientista social continua crescendo, com a fantasia e o distanciamento, o sabor levemente ácido da carambola, da mesma forma que mais de 40 anos de abstinência certamente melhoraram muito na imaginação de Davenport o néctar que sugava em cada jaboticaba.
Os escritos de Davenport, que voltam à luz 85 anos depois de arquivados e 125 anos após as anotações originais, não perderam, porém, sua vitalidade e nos remetem num átimo à zona rural de Piracicaba, onde um grupo de brasileiros que ainda mantinham nas feições caucasianas os sinais do sangue índio de seus avós, como Davenport repara e registra no próprio Luiz de Queiroz, começavam mais que desbravar, a tentar construir um Brasil melhor, moderno e, principalmente, mais justo para seus habitantes. É uma missão que Luiz de Queiroz legou às novas gerações e que, na mesma fazenda onde, de "trolley", chegou um dia o professor americano extasiado diante dos trópicos, os seguidores do pioneiro continuam sua obra redentora.
Luiz Roberto de Souza Queiroz
REFERÊNCIAS
DAVEMPORT, E.
Memórias. [S.l: s.n.], [2017?]. 54 p. (University of Illinois
Archives Record Series, 8-1-21; Eugene Davemport Paper Box, 4).
Na semana que vem falaremos sobre o convite de Luiz de Queiroz a Eugene Davenport para colaborar na criação e direção de uma escola de agricultura na Fazenda São João da Montanha.