Adilson D. Paschoal
Professor Sênior da Esalq-USP
Sociedade Patriarcal: todo o poder ao patriarca e ao varão primogênito. Às mulheres tudo se proíbe. Igreja: local de encontros religiosos e sociais. O mundo recluso das “iaiás”. Medicina e higiene precárias. Parteiras e amas de leite. Uma amputação feita por um prático e um marceneiro.
Em todo o tempo do Brasil Colônia e do Brasil Reino, a família era o sustentáculo de toda a economia e a espinha dorsal da sociedade, administrando, também, as questões políticas. Constituia-se de um clã formado pelo patriarca, sua esposa e eventuais concubinas, e seus filhos, parentes, padrinhos, afilhados, amigos, dependentes, escravos e ex-escravos. Uma legião de agregados submetia-se à temida mas segura autoridade do patriarca, que, por direito, controlava, além de seus bens, a vida e as propriedades de sua mulher e filhos. Dotado de todas as virtudes e qualidades possíveis a um ser humano, o patriarca era o amigo e o conselheiro de todos os momentos, sendo jamais desrespeitado no lar ou fora dele.
Era este chefe de clã que presidia a única ordem perfeita e íntegra das sociedades colonial e imperial: a organização familiar. Não havia comunidades civis, militares ou eclesiásticas que congregassem pessoas de interesses tão comuns como a família patriarcal. O próprio governo, que deveria estar acima das questões familiares, esbarrava nelas quando necessitava intervir. Mas a família solidamente organizada era quem sustentava o próprio governo, impedindo que a população, tão escassa e quase nômade, se pulverizasse pelo imenso sertão.
A família patriarcal era o mundo do homem por excelência. O patriarca e seus filhos varões não reconheciam sequer a autoridade dos padres. Assistiam à missa em lugares destacados e sempre externavam suas vaidades pessoais de proprietário de uma capela, de protetor da religião, ou de bom contribuinte da igreja. Jamais um orgulhoso varão beijaria as mãos de um clérigo, como o faziam sua esposa e filhas. Nesse universo masculino, o filho mais velho também desfrutava de imensos privilégios, especialmente em relação a seus irmãos. Os homens em geral dispunham de infinitas regalias, a começar pelo duplo moral vigente, que lhes permitia aventuras com criadas e ex-escravas, desde que fosse guardada certa discrição, enquanto que às mulheres tudo era proibido.
Por mais enaltecido que fosse o papel de mãe, obscuro destino reservava às mulheres. Uma senhora de elite, como era Maria Theodora de Barros, filha do capitão José Monteiro de Barros, envolta em aura de castidade e resignação, devia procriar e obedecer. Com os filhos mantinha poucos contatos, uma vez que os confiava aos cuidados de amas de leite, preceptoras e governantas. Sobravam-lhe as amenidades, como a confeção de roupas, as parcas leituras e a supervisão do trabalhos doméstico dos escravos, inclusive a destilação de vinho e o preparo de óleo de mamona (óleo de rícino) usado nos candeeiros para iluminação. Até mesmo as linhas de parentesco, tão caras à sociedade patriarcal, só se tornavam efetivas quando provinham do homem. Desse modo, a mulher perdia a consanguinidade de sua própria família de origem, para adotar a do esposo.
Assim como muitos patriarcas, o capitão João de Sousa Nogueira, neto do capitão-mor Thomé R. Nogueira do Ó, era o grande senhor rural, proprietário de imensas sesmarias, onde se criavam animais e se plantavam culturas. Na casa-grande da fazenda, sede do fechado mundo patriarcal, nasceram oito dos onze filhos de João de Sousa Nogueira e Maria Teodora de Barros, além de seus numerosos netos.
“A unidade da família”, dizia o patriarca à sua esposa, “deve ser preservada a todo custo, e, para isso, nossos filhos poderão se casar com os os filhos de meus irmãos ou dos seus, caso não encontremos para eles alguém de igual ou melhor sorte.” Assim foi que pelo menos dois de seus filhos casaram-se com suas primas, Nogueira como eles. A fortuna do clã e suas propriedades se mantinham, assim, indivisíveis, sob a chefia do patriarca.
Dos onze filhos do casal João de Sousa Nogueira e Maria Theodora de Barros o primeiro a nascer foi Urias Emídio Nogueira de Barros, em 1792. O nascimento do primogênito varão, a quem cabia todas as regalias do sistema patriarcal, enche de alegria o capitão João de Sousa Nogueira.
Vindos de Baependi para Casa Branca em 1815, local escolhido pelo capitão e o tenente seu filho, após terem ido, a cavalo, à Corte de D. João VI, onde sua majestade informara-os do assentamento real de açorianos nesta freguesia, e que, por isso, prometia notável desenvolvimento, o capitão João Nogueira, sua esposa Maria Teodora e filhos, dentre os quais o tenente Urias, estabelecem-se em suas fazendas.
Como era tradição da época, os agricultores costumavam ter, além da sede da fazenda, uma casa no povoado, para poderem assistir às missas aos domingos e dias santos, sem que a família tivesse de se deslocar muito para esse fim. Nas fazendas coloniais, a parte de trás da casa e o quintal eram reservados às mulheres. As pessoas que não pertenciam à família eram recebidas em uma sala, logo na entrada da casa. A construção seguia o padrão rural da época, com ampla varanda, tendo nas extremidades quartos para hóspedes e uma capela.
Era na igreja, durante a santa missa e as festas religiosas, que rapazes e moças de família podiam se encontrar, iniciar relacionamento e, se fosse do interesse dos pais, arranjar casamento. A maioria das moças, que familiarmente se chamava de “iaiá” (apócope de sinhá) vivia reclusa o tempo todo e só se casava por encomenda de seus pais, mais interessados em agregar os clãs, por riqueza e poder político. Afinal, eram tão poucas as mulheres que acabavam sendo guardadas como verdadeiras relíquias, razão pela qual a parte de trás da casa e o quintal eram exclusivos delas, nenhum estranho podendo adentrar esses lugares.
Em uma manhâ clara de domingo de 1818, Constança Filisbina Alves da Cunha, de vinte e um anos de idade, pois nascera em 1797, e seus irmãos Manuel Alves da Cunha e José Alves da Cunha, que haviam deixado Aiuruoca para viverem em Casa Branca, assistiam à missa na capela recém construida de Nossa Senhoras das Dores. Era vigário o padre Francisco de Godoy. A rústica capela, sem torres nem pórtico, podia acomodar cinquenta pessoas, todas elas mal acomodadas no chão, pois, como era regra, não havia bancos nem cadeiras nas igrejas.
Constança Filisbina obtivera autorização de seus pais para assistir à missa no povoado, porque eles sabiam que a capela era lugar respeitado e muito bem frequentado. Ao contrário do que ocorria com a maioria das moradias da época, cheias de mato, poeira e lama, as igrejas tinham certas características de conforto, limpeza e higiene, que constituiam atrativos não apenas para práticas religiosas, mas também sociais; em alguns casos, porém, podiam levar os fieis a praticarem atos profanos e mesmo imorais. Olhares insinuantes e até carícias em meio à missa eram comuns nestes tempos. Não é de se admirar pois que os pais das famílias de mais tradição resistissem em deixar suas filhas frequentarem missas em tais igrejas. O mesmo ocorria nos poucos conventos existentes nas vilas e nas cidades.
À missa também assistiam o capitão João de Sousa Nogueira e toda sua família. Ao encerrar-se a cerimônia litúrgica, as famílias da Cunha e Nogueira são apresentadas entre si pelo padre Godoy. Urias Emídio fica, assim, conhecendo a bela Constança Filisbina, que, como ele, era a primogênita da tradicional família; por ela se apaixona e com ela se casa neste mesmo ano de 1818.
As condições de higiene na freguesia continuavam precárias, assim como em quase todo o serrtão. Não havia médicos. Os nascimentos ocorriam pelos serviços de parteiras, na casa das parturientes. Quando faltava leite à mãe eram chamadas as amas de leite, escravas negras, de fartos seios, que amamentavam tanto o filho próprio como aquele da sinhá. O único recurso disponível para a cura das doenças vinha das matas e dos campos, com ervas que há séculos os portugueses haviam aprendido com os índígenas. Urias era um dos conhecedores da arte da medicina caseira. “A vida no sertão obrigou ao Tenente Urias a estudar o efeito de plantas agrestes, chegando a adquirir grande prática na aplicação das mesmas; preconizava os efeitos do Tayuyá que aplicava em pílulas contra diversas moléstias.” Hoje se sabe que o tayuyá (Cayaponia tayuya) é planta depurativa e diurética, indicada para reumatismo, artrite e artrose. Água, só de bicas e chafarizes, que as escravas apanhavam e traziam em recepientes de lata ou de barro; em alguns casos, havia poços caseiros. Fossas negras, das latrinas, recebiam dejetos humanos; quando transbordavam, espalhavam doenças. A epidemia de cólera, de 1831-1832 na Europa, despertou preocupação com o saneamento das cidades. Entretanto, as novidades raramente chegavam ao interior paulista.
A precariedade médica é confirmada com um acontecimento trágico ocorrido com um cunhado de Urias, de nome Manuel Joaquim da Cunha. Ele viera para Casa Branca com todos os outros irmãos. Certa feita, em 1841, estando enfermo, com grave lesão em um dos braços, cuja ferida não cicatrizava, consumindo-lhe cada vez mais o membro uma terrível necrose (gangrena). Manuel, em desespero, e na falta de médico, manda trazer de Mogi Mirim, Serafim Brants, que se dizia prático em “Arte Chirurgica”, além de um carpinteiro do povoado e mais outros oficiais, e ordena-lhes que amputem o braço lesado. Ante a surpresa de todos, Manuel presta juramento diante deles, dizendo que a responsabilidade pela “cirurgia” era toda dele, eximindo-os de culpa na eventualidade de insucesso. A notícia agita o povoado e uma corrente de oraçoes é feita em sua intenção.
Sem anestesia, e com rudes ferramentas, o braço é amputado, mas Manuel não resiste e falece. Passados alguns dias do triste episódio, os responsáveis pela amputação tiveram de prestar esclarecimentos à autoridade policial. O comendador Francisco Antônio Gonçalves dos Santos, filho do capitão-mor Joaquim Gonçalves dos Santos, agora na função de juiz de paz de Casa Branca, oficializa, ao presidente da província, um comunicado sobre o triste episódio da amputação, nos seguintes termos: ...“achando-se nesta Freguezia duente Manuel Joaquim da Cunha lhe fora feito amputação em hum dos braços q. Serafim Caldeira Brants, acomp.do do Carpinteiro Antônio Gomes de Meireles e outros, sem que nenhum delles sejão Cirurgião aprovado, e q.,seguindo-se da brutalidade com q. praticarão semelhante operação a morte do enfermo, e sobre isto se dignou V. Excia ordenar-me que procedendo as averiguações necessárias...Caza Branca, 4 de 8bro de 1841.”
Defendendo-se, Serafim Brants esclarece, por escrito, o ocorrido, afirmando que tinham capacidade para esse procedimento, para isso citando e mostrando livro de procedimentos cirúrgicos da época, no qual se baseou, dizendo que “efetuou as laquiações das veias e ligaduras”, como orientava o tratado. Disse também no inquérito tratar-se de “braço esquerdo em estado de putrefação e já em tal grao, que exalava péssimo cheiro, ou fedor insuportavel; mas resultante de uma chaga cancroza, em estado gangrenozo, que se rtinha adinatado até o hombro, e como se não podesse atalhar veio a morrer o enfermo como consequência da gangrena.”
Continua.
Referência.
Paschoal, A.D. História de uma família. Genealogia à luz da história. Tomo I. Séculos VIII a XIX. 430 p. Piracicaba, 2007.