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quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

Aspectos Históricos da Agricultura Paulista: Parte 11. Usos e costumes da sociedade patriarcal rural do Brasil Colônia e do Brasil Reino.

Adilson D. Paschoal
Professor Sênior da Esalq-USP

Sociedade Patriarcal: todo o poder ao patriarca e ao varão primogênito. Às mulheres tudo se proíbe. Igreja: local de encontros religiosos e sociais. O mundo recluso das “iaiás”. Medicina e higiene precárias. Parteiras e amas de leite. Uma amputação feita por um prático e um marceneiro.


Em todo o tempo do Brasil Colônia e do Brasil Reino, a família era o sustentáculo de toda a economia e a espinha dorsal da sociedade, administrando, também, as questões políticas. Constituia-se de um clã formado pelo patriarca, sua esposa e eventuais concubinas, e seus filhos, parentes, padrinhos, afilhados, amigos, dependentes, escravos e ex-escravos. Uma legião de agregados submetia-se à temida mas segura autoridade do patriarca, que, por direito, controlava, além de seus bens, a vida e as propriedades de sua mulher e filhos. Dotado de todas as virtudes e qualidades possíveis a um ser humano, o patriarca era o amigo e o conselheiro de todos os momentos, sendo jamais desrespeitado no lar ou fora dele.

Era este chefe de clã que presidia a única ordem perfeita e íntegra das sociedades colonial e imperial: a organização familiar. Não havia comunidades civis, militares ou eclesiásticas que congregassem pessoas de interesses tão comuns como a família patriarcal. O próprio governo, que deveria estar acima das questões familiares, esbarrava nelas quando necessitava intervir. Mas a família solidamente organizada era quem sustentava o próprio governo, impedindo que a população, tão escassa e quase nômade, se pulverizasse pelo imenso sertão.

A família patriarcal era o mundo do homem por excelência. O patriarca e seus filhos varões não reconheciam sequer a autoridade dos padres. Assistiam à missa em lugares destacados e sempre externavam suas vaidades pessoais de proprietário de uma capela, de protetor da religião, ou de bom contribuinte da igreja. Jamais um orgulhoso varão beijaria as mãos de um clérigo, como o faziam sua esposa e filhas. Nesse universo masculino, o filho mais velho também desfrutava de imensos privilégios, especialmente em relação a seus irmãos. Os homens em geral dispunham de infinitas regalias, a começar pelo duplo moral vigente, que lhes permitia aventuras com criadas e ex-escravas, desde que fosse guardada certa discrição, enquanto que às mulheres tudo era proibido.

Por mais enaltecido que fosse o papel de mãe, obscuro destino reservava às mulheres. Uma senhora de elite, como era Maria Theodora de Barros, filha do capitão José Monteiro de Barros, envolta em aura de castidade e resignação, devia procriar e obedecer. Com os filhos mantinha poucos contatos, uma vez que os confiava aos cuidados de amas de leite, preceptoras e governantas. Sobravam-lhe as amenidades, como a confeção de roupas, as parcas leituras e a supervisão do trabalhos doméstico dos escravos, inclusive a destilação de vinho e o preparo de óleo de mamona (óleo de rícino) usado nos candeeiros para iluminação. Até mesmo as linhas de parentesco, tão caras à sociedade patriarcal, só se tornavam efetivas quando provinham do homem. Desse modo, a mulher perdia a consanguinidade de sua própria família de origem, para adotar a do esposo.

Assim como muitos patriarcas, o capitão João de Sousa Nogueira, neto do capitão-mor Thomé R. Nogueira do Ó, era o grande senhor rural, proprietário de imensas sesmarias, onde se criavam animais e se plantavam culturas. Na casa-grande da fazenda, sede do fechado mundo patriarcal, nasceram oito dos onze filhos de João de Sousa Nogueira e Maria Teodora de Barros, além de seus numerosos netos.

“A unidade da família”, dizia o patriarca à sua esposa, “deve ser preservada a todo custo, e, para isso, nossos filhos poderão se casar com os os filhos de meus irmãos ou dos seus, caso não encontremos para eles alguém de igual ou melhor sorte.” Assim foi que pelo menos dois de seus filhos casaram-se com suas primas, Nogueira como eles. A fortuna do clã e suas propriedades se mantinham, assim, indivisíveis, sob a chefia do patriarca.

Em todo o tempo colonial, a família era o sustentáculo da economia e a espinha dorsal da sociedade, administrando, também, as questões políticas. Constituia-se de um clã formado pelo patriarca, sua esposa e eventuais concubinas, e seus filhos, parentes, padrinhos, afilhados, amigos, dependentes, escravos e ex-escravos. Ocupações e castigos familiares. Gravura de Johann Moritz Rugendas.

Dos onze filhos do casal João de Sousa Nogueira e Maria Theodora de Barros o primeiro a nascer foi Urias Emídio Nogueira de Barros, em 1792. O nascimento do primogênito varão, a quem cabia todas as regalias do sistema patriarcal, enche de alegria o capitão João de Sousa Nogueira.

Vindos de Baependi para Casa Branca em 1815, local escolhido pelo capitão e o tenente seu filho, após terem ido, a cavalo, à Corte de D. João VI, onde sua majestade informara-os do assentamento real de açorianos nesta freguesia, e que, por isso, prometia notável desenvolvimento, o capitão João Nogueira, sua esposa Maria Teodora e filhos, dentre os quais o tenente Urias, estabelecem-se em suas fazendas.

Como era tradição da época, os agricultores costumavam ter, além da sede da fazenda, uma casa no povoado, para poderem assistir às missas aos domingos e dias santos, sem que a família tivesse de se deslocar muito para esse fim. Nas fazendas coloniais, a parte de trás da casa e o quintal eram reservados às mulheres. As pessoas que não pertenciam à família eram recebidas em uma sala, logo na entrada da casa. A construção seguia o padrão rural da época, com ampla varanda, tendo nas extremidades quartos para hóspedes e uma capela.


Nas fazendas coloniais, a parte de trás da casa e o quintal eram reservados às mulheres. As pessoas que não pertenciam à família eram recebidas em uma sala, logo na entrada da casa. A construção seguia o padrão rural da época, com ampla varanda, tendo nas extremidades quartos para hóspedes e uma capela.

Era na igreja, durante a santa missa e as festas religiosas, que rapazes e moças de família podiam se encontrar, iniciar relacionamento e, se fosse do interesse dos pais, arranjar casamento. A maioria das moças, que familiarmente se chamava de “iaiá” (apócope de sinhá) vivia reclusa o tempo todo e só se casava por encomenda de seus pais, mais interessados em agregar os clãs, por riqueza e poder político. Afinal, eram tão poucas as mulheres que acabavam sendo guardadas como verdadeiras relíquias, razão pela qual a parte de trás da casa e o quintal eram exclusivos delas, nenhum estranho podendo adentrar esses lugares.

Em uma manhâ clara de domingo de 1818, Constança Filisbina Alves da Cunha, de vinte e um anos de idade, pois nascera em 1797, e seus irmãos Manuel Alves da Cunha e José Alves da Cunha, que haviam deixado Aiuruoca para viverem em Casa Branca, assistiam à missa na capela recém construida de Nossa Senhoras das Dores. Era vigário o padre Francisco de Godoy. A rústica capela, sem torres nem pórtico, podia acomodar cinquenta pessoas, todas elas mal acomodadas no chão, pois, como era regra, não havia bancos nem cadeiras nas igrejas.

Constança Filisbina obtivera autorização de seus pais para assistir à missa no povoado, porque eles sabiam que a capela era lugar respeitado e muito bem frequentado. Ao contrário do que ocorria com a maioria das moradias da época, cheias de mato, poeira e lama, as igrejas tinham certas características de conforto, limpeza e higiene, que constituiam atrativos não apenas para práticas religiosas, mas também sociais; em alguns casos, porém, podiam levar os fieis a praticarem atos profanos e mesmo imorais. Olhares insinuantes e até carícias em meio à missa eram comuns nestes tempos. Não é de se admirar pois que os pais das famílias de mais tradição resistissem em deixar suas filhas frequentarem missas em tais igrejas. O mesmo ocorria nos poucos conventos existentes nas vilas e nas cidades.

Ao contrário do que ocorria com a maioria das moradias da época, cheias de mato, poeira e lama, as igrejas tinham certas características de conforto, limpeza e higiene, que constituiam atrativos não apenas para práticas religiosas, mas também sociais; em alguns casos, porém, podiam levar os fieis a praticarem atos profanos e mesmo imorais. Missa. Johan Moritz Rugendas.

À missa também assistiam o capitão João de Sousa Nogueira e toda sua família. Ao encerrar-se a cerimônia litúrgica, as famílias da Cunha e Nogueira são apresentadas entre si pelo padre Godoy. Urias Emídio fica, assim, conhecendo a bela Constança Filisbina, que, como ele, era a primogênita da tradicional família; por ela se apaixona e com ela se casa neste mesmo ano de 1818.

As condições de higiene na freguesia continuavam precárias, assim como em quase todo o serrtão. Não havia médicos. Os nascimentos ocorriam pelos serviços de parteiras, na casa das parturientes. Quando faltava leite à mãe eram chamadas as amas de leite, escravas negras, de fartos seios, que amamentavam tanto o filho próprio como aquele da sinhá. O único recurso disponível para a cura das doenças vinha das matas e dos campos, com ervas que há séculos os portugueses haviam aprendido com os índígenas. Urias era um dos conhecedores da arte da medicina caseira. “A vida no sertão obrigou ao Tenente Urias a estudar o efeito de plantas agrestes, chegando a adquirir grande prática na aplicação das mesmas; preconizava os efeitos do Tayuyá que aplicava em pílulas contra diversas moléstias.” Hoje se sabe que o tayuyá (Cayaponia tayuya) é planta depurativa e diurética, indicada para reumatismo, artrite e artrose. Água, só de bicas e chafarizes, que as escravas apanhavam e traziam em recepientes de lata ou de barro; em alguns casos, havia poços caseiros. Fossas negras, das latrinas, recebiam dejetos humanos; quando transbordavam, espalhavam doenças. A epidemia de cólera, de 1831-1832 na Europa, despertou preocupação com o saneamento das cidades. Entretanto, as novidades raramente chegavam ao interior paulista.

A precariedade médica é confirmada com um acontecimento trágico ocorrido com um cunhado de Urias, de nome Manuel Joaquim da Cunha. Ele viera para Casa Branca com todos os outros irmãos. Certa feita, em 1841, estando enfermo, com grave lesão em um dos braços, cuja ferida não cicatrizava, consumindo-lhe cada vez mais o membro uma terrível necrose (gangrena). Manuel, em desespero, e na falta de médico, manda trazer de Mogi Mirim, Serafim Brants, que se dizia prático em “Arte Chirurgica”, além de um carpinteiro do povoado e mais outros oficiais, e ordena-lhes que amputem o braço lesado. Ante a surpresa de todos, Manuel presta juramento diante deles, dizendo que a responsabilidade pela “cirurgia” era toda dele, eximindo-os de culpa na eventualidade de insucesso. A notícia agita o povoado e uma corrente de oraçoes é feita em sua intenção.

Sem anestesia, e com rudes ferramentas, o braço é amputado, mas Manuel não resiste e falece. Passados alguns dias do triste episódio, os responsáveis pela amputação tiveram de prestar esclarecimentos à autoridade policial. O comendador Francisco Antônio Gonçalves dos Santos, filho do capitão-mor Joaquim Gonçalves dos Santos, agora na função de juiz de paz de Casa Branca, oficializa, ao presidente da província, um comunicado sobre o triste episódio da amputação, nos seguintes termos: ...“achando-se nesta Freguezia duente Manuel Joaquim da Cunha lhe fora feito amputação em hum dos braços q. Serafim Caldeira Brants, acomp.do do Carpinteiro Antônio Gomes de Meireles e outros, sem que nenhum delles sejão Cirurgião aprovado, e q.,seguindo-se da brutalidade com q. praticarão semelhante operação a morte do enfermo, e sobre isto se dignou V. Excia ordenar-me que procedendo as averiguações necessárias...Caza Branca, 4 de 8bro de 1841.”

Defendendo-se, Serafim Brants esclarece, por escrito, o ocorrido, afirmando que tinham capacidade para esse procedimento, para isso citando e mostrando livro de procedimentos cirúrgicos da época, no qual se baseou, dizendo que “efetuou as laquiações das veias e ligaduras”, como orientava o tratado. Disse também no inquérito tratar-se de “braço esquerdo em estado de putrefação e já em tal grao, que exalava péssimo cheiro, ou fedor insuportavel; mas resultante de uma chaga cancroza, em estado gangrenozo, que se rtinha adinatado até o hombro, e como se não podesse atalhar veio a morrer o enfermo como consequência da gangrena.”

Continua.

Referência.
Paschoal, A.D. História de uma família. Genealogia à luz da história. Tomo I. Séculos VIII a XIX. 430 p. Piracicaba, 2007.

Aspectos Históricos da Agricultura Paulista: Parte 10. A árdua tarefa de obter terras, fazê-las produzir e delas viver nas fazendas coloniais.

Adilson D. Paschoal
Professor Sênior da Esalq-USP

Século XIX. Obtenção de terras de sesmaria na Capitania de São Paulo. De cavalo à Corte de D. João VI. O assentamento real de açorianos traz muitos sesmeiros para Casa Branca. Fazenda da Cachoeira. Freguesia dos Batatais. A lendária Zabelona.


A obtenção de terras de sesmaria na Capitania de São Paulo, desde o século XIX, com os incentivos de Morgado Mateus, exigia muitos sacrifícios. Primeiro, tinha-se que ter capital avultado e vários escravos, pois não os tendo e não se conseguindo ocupá-las, fazendo-as produzir dentro do prazo estipulado, acabavam retornadas ao governo. Nesse sentido, os mineiros do sul da Capitania das Gerais estavam em vantagem, enriquecidos que se achavam pela mineração, depois da qual se converteram em abastados agricultores. Adentrar o sertão, inóspito e bravio, a procura de terras devolutas próprias para agricultura ou para criação animal era o segundo e mais difícil desafio. Depois, eram as questões burocráticas e técnicas, para obter a posse das terras, a ida até elas, enfrentado, de novo, as agruras do sertão pouco conhecido, a demarcação, o desmoitado, a ereção de casas, ranchos, engenho, senzala e tudo o mais necessário à prática da agricultura e da criação animal.

Ano de 1810. Residência dos Nogueiras na vila de Baependi. Na ampla sala do solário, um jovem tenente de 18 anos ouve, atentamente, o relato de um amigo de seu pai, sertanista de larga experiência, e que fora convidado pelo capitão João de Sousa Nogueira para expor os conhecimentos que tinha do sertão para onde o tenente tão ardentemente desejava se aventurar.

— É sertão bravio — conta ele — de muitas montanhas cobertas por matas fechadas, morada de feras e selvagens caiapós. Muitos ribeiros faiscaram ouro, que era pouco, levando os aventureiros a pedirem terras de sesmaria à beira das trilhas, por onde estavam passando tropas paulistas e mineiras.

Quando perguntado que trajeto fizera, respondeu com tal brilho nos olhos, que chegou a impressioar vivamente o jovem tenente. A conversa atravessa a tarde, pela riqueza de detalhes esclarecedores. Por fim, num ímpeto juvenil, exclama o tenente:

— Pois então está decidido! — Se com isso concordar o capitão meu pai, será por esse caminho que chegarei ao sertão do Jacuí, na fronteira com São Paulo.

— O tenente só terá de tomar muito cuidado — finaliza o sertanista — pois nestes sertões ainda há muitos quilombos, de negros fugitivos e brancos assassinos.

Assim teve inicio a brilhante carreira, de sertanista, tropeiro e agricultor, do tenente Urias Emílio Nogueira de Barros. Depois de ele ter percorrido a imensidão dos sertões brasileiros, notadamente os do Sul da Colônia, pela Estrada de Viamão, ou Estrada das Tropas, que ia de Sorocaba a Viamão, na Capitania do Rio Grande de São Pedro (Rio Grande do Sul), e de ter passado sucessivas vezes pelo Sertão do Rio Pardo, onde se encantara pela beleza das matas e pela vastidão dos campos, aconselha seus pais a deixarem Baependi, nas Gerais, e a se mudarem para a região. Como eles, muitos mineiros estavam vindo para o noroeste paulista, principalmente para criarem gado.

Em 17 de fevereiro de 1815, o tenente Urias e seu pai vão a cavalo à Corte, no Rio de Janeiro, uma viagem de mais de 80 léguas, que levava meses de viagem, onde obtêm passaportes, com validades de três meses, concedidos em nome do príncipe regente pelo intendente geral da polícia da Corte. Pela sua fidalguia e muitas posses, são recebidos pelo futuro monarca D. João VI, de quem ficam sabendo de seu propósito, posto em prática mui recentemente, de assentar agricultores açorianos na freguesia da Casa Branca, à custa do erário Real. Por tal motivo — asseverara-lhes o futuro rei — deverá trazer grande desenvolvimento para aquele sertão.

Em 1815, o tenente Urias e seu pai vão a cavalo à Corte, no Rio de Janeiro, uma viagem de mais de 80 léguas, que levava meses de viagem. Em um vale da serra dos Órgãos, de beleza extraordinária, a tropa se detém para o pouso noturno, às margens de um ribeiro de águas límpidas e geladas. Serra dos Órgãos. Litogravura de Johan Moritz Rugendas.
Pelo interesse demonstrado, o capitão e seu filho obtêm sesmarias em terras devolutas pertencentes à freguesia da Casa Branca, para além do ribeiro Palmeiras, e ao arraial dos Batatais (futuramente, esta região se converteria no principal polo produtor de café, surgindo Ribeirão Preto em 1856).

A passagem pela freguesia da Casa Branca foi rápida. No ano de 1815, construía-se aí a capela de Nossa Senhora das Dores e concluíam-se as vinte e quatro casas para abrigar os ilhéus dos Açores. Descendo pela estrada que cortava a freguesia, havia várias casas esparsas. Em uma delas, bastante ampla, coberta de sapé, a família Nogueira fica alojada para o pernoite. Dias depois, recuperados da longa viagem que haviam feito, o capitão João ordena a partida, a fim de tomar posse de suas terras de sesmaria adiante do ribeiro Palmeiras e na freguesia dos Batatais.

Tendo-se abastecido de mercadorias nas vendas próximas, e estando os animais prontos para nova jornada, os Nogueiras e seus escravos e agregados atravessam ponte de pau sobre o ribeiro Palmeiras (Espraiado), vadeiam quatro outros ribeirões até o sítio chamado Estiva, onde existiam três casas pobres, pertencentes à família de Lara — José, Vicente e Francisco —, que costumavam negociar com os tropeiros e carreiros que por aí passavam. Algumas mulas são trocadas por outras mais descansadas, e alguns víveres são adquiridos. Continuando a marcha, percorrendo terreno de linda e pitoresca vista, os viajantes atravessam um capão, passam por estreita ponte de madeira sobre o ribeiro Tambaú, cheio de pequenas conchas, e atingem a fazenda da Paciência, onde, por ordem do capitão, o chefe dos arrieiros pede pouso. Ao saber tratar-se de família nobre de Baependi, o português Joaquim Machado, dono da fazenda, vai pessoalmente receber os hóspedes.

A visita à bem sucedida fazenda da Paciência e uma conversa franca com seu proprietário, fazendeiro arrojado, que tivera papel preponderante na ereção da freguesia em Casa Branca, foram decisivas para que o capitão João de Sousa Nogueira e seu filho Urias tomassem a decisão de se fixarem em Casa Branca. As terras, ainda de poucos donos, a posição estratégica da freguesia na Estrada de Goiás, onde se entroncava com muitos caminhos para Minas Gerais, e o interesse do príncipe regente em nela fixar núcleos de colonização portuguesa, prometiam grande futuro a todos.

Próximo da Paciência ficava uma das sesmarias de que toma posse o capitão, transformando-a em produtiva fazenda, a que chama fazenda da Cachoeira. Em Casa Branca, no ano 1816, o capitão João Nogueira informa, no recenceamento, que tinha cinquenta e oito anos de idade, era natural de Minas, e residia na vila com sua esposa Maria Teodora de Barros, de quarenta e um anos, também natural de Minas Gerais, e os filhos solteiros Antônio, João, José, Hipólita, Bernardina e Ignácia. Nesse mesmo ano, afirma que “colheo 10 carros de milho (7.200 kg), 22 alqueires de feijão (670 Kg) e 9 arrobas de algudão (145 kg). Entrou 5 alqueires de sal por 15$000. Consumio tudo em caza.” Tinha quinze escravos, sendo dez adultos (dez homens e cinco mulheres), dos quais três eram angolas (trazidos da África) e doze criolos (nascidos no Brasil), com idades entre dois e quarenta e nove anos.

Mas havia mais terras para tomar posse, e estas ficavam próximas à freguesia dos Batatais, cerca de 16 léguas (64 km) da Paciência e outras tantas da Cachoeira. Enquanto parte da família permanecia nas terras da Casa Branca, comandando a implantação da fazenda, o capitão João, seu filho Urias e a tropa seguem para Batatais. Após marchar adiante quatro léguas e um quarto (17 km),chegam ao rio Pardo, onde existe porto com cobrança de pedágio. Tendo o rio largura de cento e cinquenta braças, a travessia das pessoas e cargas é feita em canoas; somente as bestas atravessam à nado. O capitão paga quatrocentos réis por pessoa, vinte réis por carga e sessenta réis por animal de carga.

Partindo desse lugar, o caminho torna-se descoberto, com alguns poucos moradores isolados. Entrando na serra do Cubatão, de fácil acesso, atravessa-se rio de mesmo nome, por ponte de pau, chegando-se ao pouso do Cubatão, distante três léguas (12 km) do rio Pardo, contando-se até aí cinco ribeiros. O pouso do Cubatão assentado em plano mais alto, permite que se descortinem, para o lado da serra, os cumes de diversos bosques.

— Terminam aqui as terras da freguesia da Casa Branca — diz Urias ao capitão seu pai.

— E também aqui começam as de Batatais — responde-lhe o capitão —, onde ficam terras que iremos legitimar a posse. — Pelo que soube, aqui logo nascerá nova freguesia.

— Para nossa felicidade, meu pai — comenta Urias —, ela já foi criada, segundo me disse o gentil-homem dono da Paciência.

Do pouso do Cubatão em diante o terreno apresenta diversos capões e capoeiras; o caminho é bom, plano por largos espaços. Densa floresta cobre profundo vale, avistando-se ao longe a serra das Caldas. Após três léguas (12 km), chega-se à fazenda das Lages, onde há grande negócio com gado. Das Lages, parte-se rumo ao norte, descendo-se a um vale cortado por ribeiro, além do qual está a serra do Morro; o caminho é por aqui ruim, e há ladeira íngreme, com muita pedra solta, sendo infestado de mutucas e mosquitos. Nas proximidades passa o rio Araraquara, afluente do Pardo. A estrada segue plana e agradável. Subindo a serra do Mato Grosso, coberta por altas e grossas árvores, e passado o ribeiro da Bela Vista, a poucos passos se apresenta aos olhos um quadro encantador: extensos campos, semeados de gado, diversos capões e capoeiras, cristalinos ribeiros e algumas colinas ao longe. Depois de marchar oito léguas e meia (34 km), desde o pouso do Cubatão, os viajantes chegam finalmente à freguesia dos Batatais (Batatais, 1801).

— Será qui vamu incontrá muita batata pur aqui, capitão? — indaga, com ironia, um tocador de burros, que vinha com a tropa.

— É o que parece dizer a palavra — responde-lhe o capitão João —. Mas ouvi dizer que o nome foi dado pelos bugres que aqui viviam, por motivo de existir muita cobra de fogo por estas bandas, “mboitata” na língua deles, que os índios acreditavam ser um gênio que protegia os campos contra os incêndios...

— Uai! Si é ansim — comenta o mateiro, provocando risos — será bão que mecê deite arguma delas nos seus campu, qui é pru gado ingordá mais mió.

Por esta época, havia quinze posses de sesmarias na região, que foram se dividindo dando origem a fazendas. Em 1801, Batatais era apenas um povoado de meia dúzia de casas humildes. Nove anos depois, tinha pequeno cemitério e passava à condição de arraial. Em 1814, já existiam capelas e povoados na região, suficientes para que fosse erigido em freguesia, com o nome de Senhor Bom Jesus da Cana Verde de Batatais (1815).

Nos anos 1817, 1818 e 1820, o capitão João de Sousa Nogueira é de novo recenceado nesta freguesia de Batatais, como parte da população de Mogi Mirim. A fazenda de que era proprietário, assim como todas as demais de posse de mineiros, tinha a mesma estrutra das fazendas do sul de Minas; conservavam-se, dessa maneira, os bons hábitos havidos de seus ancestrais. Mal clareava o dia, o pátio da fazenda, sempre muito amplo e cercado por grossos mourões, logo se enchia de vacas. Os filhos do dono começavam a ordenhá-las, misturando-se com negras escravas.

A palavra Batatais foi dada ao lugarejo pelos bugres que aqui viviam, por motivo de existir muita cobra de fogo por estas bandas, “mboitata” na língua deles, que os índios acreditavam ser um gênio que protegia os campos contra os incêndios. Caça à onça. Gravura de Johanenn Moritz Rugendas.


Em 1817, no recenseamento de Batatais, lia-se o seguinte: “Cresseu nesta familia comparada com a do anno antecedente a escrava Joaquina. Colheu 30 carros de milho e 20 alq. de feijão, 16 de arroz e 6 de mamona. Entrou 8 alqq de sal por 24$000. Tudo consumiu em sua caza. Marcou 12 bezerros. Demenuhiu mais hú filho, se auzentou para as Geraes.” Em 1818, também em Batatais, o capitão vivia de engenho e de criar. Colheu quarenta carros de milho e vendeu quatro carros por 10$000, seis bois por 46$000, dez capados por 20$000 e cem queijos por 6$000. Total 82$000.

Cerca de nove léguas (36 km) de Batatais ficava o arraial de Franca, de muitos mineiros malfeitores, foragidos da justiça, o que passa a inquietar muito o capitão João e seus filhos. Possivelmente tenha sido esse um outro fator a determinar sua ida definitiva para Casa Branca, possivelmente em 1820. Na Vila Franca do Imperador, como passara a ser denominado o arraial de Franca, houve uma revolta em 1838, em que muitas atrocidades foram cometidas, levando várias pessoas de bem a fugir do local, o crime saindo vitorioso. Maus elementos também tinham se fixado em Batatais.

No ano 1820, um antes do retorno de D. João VI a Portugal, o capitão João recebe uma sesmaria chamada da Zabelona, no Sertão da Casa Branca. Quem dela toma posse, em seu nome, é o tenente Urias. Era uma imensidão de terra, compreendendo territórios de São Bento de Cajuru (Cajuru,1821) — onde hoje está a fazendas da Serra —, e de São Sebastião da Boa Vista (Mococa,1814) — onde hoje estão as fazendas Boiada, Limeira, Alegria, Três Barras e Borda da Mata. Praticamente todo o município atual de Mococa estava dentro da quase lendária Zabelona.

No ano 1820, um antes do retorno de D. João VI a Portugal, o capitão João recebe uma sesmaria chamada da Zabelona, no Sertão da Casa Branca. Era uma imensidão de terra, compreendendo territórios de São Bento de Cajuru (Cajuru,1821) e de São Sebastião da Boa Vista (Mococa,1814). Batuque em uma antiga fazenda. Litogravura de Johan Moritz Rugendas.
Com a morte do capitão João em 1827, aos 70 anos de idade, a sesmaria passa a seu segundo filho, Antônio Jacinto Nogueira, irmão do tenente Urias. Mais tarde, em 1833, a Zabelona é vendida ao famigerado Dom Thomaz de Molina, rico espanhol que para aí leva o fausto das cortes europeias. “Este Dom Thomaz estabelece, na referida sesmaria, entre ínvias serras, em esconderijo natural, com única entrada pela margem do Rio Pardo, uma fábrica de moedas de cobre, chegando a produzir muitas moedas de dez, vinte, quarenta e oitenta réis (as moedas de cobre, em 1840, perderam metade do valor, sendo recarimbadas, pelo que desapareceram as de oitenta réis). Dom Thomaz, sendo perseguido pelas justiças de El-Rei, por denúncia contra ele dada, desaparece de sua fazenda, desamparando a fábrica em franca prosperidade, sem que nem seus próprios fâmulos, que eram sua única família, soubessem que rumo seguira.”

Como as terras da Zabelona foram vendidas pelo segundo filho do capitão João, é de se supor que ele detinha a posse das terras que pertenceram a seu pai; nesse sentido, Urias não herdou a fazenda, assim como seus descendentes. Em 1833, Thomaz de Molina vende para o capitão Diogo Garcia da Cruz, então morador na vila de Lavras do Funil (Lavras), pela quantia de 12:462$000, “campos de criar e matas de cultura, denominados da Alegria, grande área delimitada pelos cursos dos Rios Areias, Canoas, Pardo e Boiada, pertencente à Zabelona.” Nesse mesmo ano, terras da Zabelona passam a José Gomes Lima, por título de compra feita também a Thomaz de Molina. Em 1856, por força da Lei da Terra, de 1850, a fazenda foi declarada de posse por José Gomes Lima, ao vigário de Casa Branca.

O tenente Urias foi senhor de uma sesmaria chamada Bocaina, em São Simão (São Simão, 1824), que pertencia a Casa Branca, assim como das seguintes outras no mesmo sertão: Cachoeira, Jardim e Rio Verde (hoje Itaby).
Continua.

Referências.
Paschoal, A.D. História de uma família. Genealogia à luz da história. Tomo I. Séculos VIII a XIX. 430 p. Piracicaba, 2007.
Stempniewski, R. Os Nogueiras, uma família de pioneiros. A Tribuna Regional. Cravinhos, 18.3.2014.

Aspectos Históricos da Agricultura Paulista: Parte 9. Tentativa colonizadora do sertão por meio de agricultura camponesa, financiada pela Real Fazenda.

Adilson D. Paschoal
Professor Sênior da Esalq-USP

1814-1821. Freguesia de Nossa Senhora das Dores da Casa Branca. Colonos dos Açores chegam ao sertão do Rio Pardo. Com os ilhéus, a esperança. Vencidos pelo sertão hostil, pela burocracia e pelo descaso, os açorianos deixam a Freguesia. Fracassa o assentamento real.


Corria o ano de 1814 quando o príncipe regente do Reino do Brasil, Dom João VI, que desde sua transferência para o Rio de Janeiro em 1808 incentivara a vinda de açorianos para o Sertão do Rio Pardo, ordena a edificação de povoado junto ao pouso da Casa Branca. Tentativas de colonização anteriores falharam por estarem os sesmeiros muito dispersos, em vasta área do sertão. Por serem experientes agricultores e contando com terras doadas pelo governo, além de apoios financeiro e técnico, os açorianos poderiam desenvolver agricultura camponesa, sem a necessidade de escravos, que custavam muito dinheiro.

A ideia de se implantar um povoamento planejado em pleno Sertão do Rio Pardo era, no mínimo, inusitada e arrojada. O objetivo do capitão-general da Capitania de São Paulo, o Conde de Palma, era aumentar o núcleo urbano, com moradores permanentes e não apenas aventureiros que para cá vinham enriquecer e depois voltar para Portugal. Por essa razão, os açorianos foram escolhidos, por serem agricultores de raiz

A escolha de Casa Branca para o assentamento planejado justificava-se pela sua posição privilegiada na Estrada de Goiás, a via principal de São Paulo, aquela de maior comércio com Minas, Goiás e Mato Grosso. A elevação de povoado a freguesia, em 1814, sob o nome de Freguesia de Nossa Senhora das Dores da Casa Branca, teve sentido político: visava desenvolver a agricultura e formar núcleos povoadores. Até a primeira década do século XIX, numeroso grupo de agricultores operava nas terras da paróquia da Casa Branca. Em 1814, havia um único senhor de engenho, vindo de Vila Rica (Ouro Preto), e noventa e três lavradores, sendo vinte e um das “Gerais”; cinquenta e dois escravos trabalhavam nas lavouras, plantando e colhendo algodão, milho, feijão, arroz e algum trigo; plantavam também cana-de-açúcar, porém o forte dos negócios era gado vacum e capado. O algodão era arbóreo, do tipo ganga, de fibras pardas, além do algodão de fibras brancas, que se tingia a maneira indígena: de vermelho, com urucum, de verde, com folhas de palmeiras, e de preto, com jenipapo. Com eles as mulheres teciam tecidos multicoloridos.

Praticava-se agricultura de subsistência, com quase toda a produção “gasta em casa”, para consumo das famílias e para venda na beira da estrada. Criadores eram apenas vinte, sendo seis da Capitania de Minas Gerais. Jornaleiros (diaristas), quase todos brancos, recebiam oitenta réis por dia nas terras onde trabalhavam; eram trinta e um ao todo. Agregados somavam setenta e cinco, havendo apenas um negociante de bois.

Neste mesmo ano de 1814, havia cento e sessenta e seis fogos (casas) nas terras da Casa Branca, com novecentos e vinte e cinco moradores; trinta e três das casas eram ocupadas por famílias mineiras. Figura marcante era o padre Francisco de Godoy Coelho, que possuia três escravos. Taberneiros, que negociavam com vendas em pousos, eram três. Dentre os artífices havia três ferreiros (com renda de 320 réis/dia), um sapateiro (160 réis/dia), dois telheiros (160 réis/dia), dois carpinteiros (320 réis/dia), e oito fiandeiras de algodão (60 réis/dia). De arriadores, que conduziam tropas para as minas, existia somente um. Escravos representavam dez porcento da população.

A ideia de se implantar um povoamento planejado em pleno Sertão do Rio Pardo era, no mínimo, inusitada e arrojada. O objetivo era aumentar o núcleo urbano, com moradores permanentes e não apenas aventureiros que para cá vinham enriquecer e depois voltar para Portugal. Paisagem. Tela de José Ferraz de Almeida Júnior

A notícia da vinda dos açorianos espalha-se rapidamente: todos se regozijam. Logo aquele sertão se povoaria e se desenvolveria, deixando de ser sertão. A vinda deles para Casa Branca animara seus moradores, pois em período anterior a esta época da colonização toda a margem do Caminho de Goiás havia sido ocupada principalmente por paulistas mamelucos, que Saint Hilaire descreve como “pouco corteses, de atitudes triviais, de ar triste, apalermado e apático... forçados, por assim dizer, a viver em meio de uma multidão de negros de camaradas ignorantes, grosseiros e viciosos.”

Cada família açoriana recebe sesmaria de légua e meia em quadra, nas terras devolutas que eles encontraram nas vertentes do rio do Peixe, no termo da vila de Mogi Mirim. A Carta de Sesmeiro do Rio do Peixe é passada em 16 de março de 1814. As terras que eles próprios escolheram — embora sem as terem visto —, não eram próprias para agricultura e, por isso, não foram ocupadas. Um dos ilhéus, de nome José de Oliveira, em requerimento ao monarca, reclama da terra recebida. No informe ao capitão-general da capitania diz ele ter recebido “huma junta de bois, huma vaca, hum machado, huma enxada, hua foice e arado, além de cem réis por dia para sua sustentação; somente não acaitou o suplicante o terreno por quererem dar-lhe hum campo que só é próprio para criação de gado.”

A vinda dos açorianos para Casa Branca animara seus moradores, pois em período anterior a esta época da colonização toda a margem do Caminho de Goiás havia sido ocupada principalmente por paulistas mamelucos. Caboclo picando fumo. Tela de José Ferraz de Almeida Júnior.

Sem terem onde ficar, estando os ilhéus provisoriamente arranchados em fazendas da região, decide-se por outra área. A escolha recai sobre as terras do coronel José Vaz de Carvalho, isso porque outras, devolutas, na margem da Estrada, não mais havia. Obtidas em sesmaria em 1791, as terras do coronel estavam em completo abandono. Por sugestão do Conde de Palma, escolhe-se uma faixa de terra junto ao ribeiro das Palmeiras (Espraiado), próxima da freguesia da Casa Branca, para arranchar os colonos dos Açores “formando alli hua Povoação, para a qual já se creou uma Frequezia nova.”

Em dezembro desse mesmo ano, vinte novos colonos dos Açores chegam à Capitania de São Paulo. Decide-se por estabelecê-los também em Casa Branca. Enquanto as casas do núcleo povoador não ficavam prontas, as famílias são arranchadas em fazendas de coronéis de Jundiaí, de Campinas e de Mogi Mirim. Simultaneamente, passa-se à busca de terras devolutas nas proximidades da nova povoação, desde que se prestassem à agricultura. Em abril de 1815, o Conde de Palma ordena à Casa da Câmara de Mogi Mirim que suspenda a concessão de sesmarias até que os ilhéus encontrem terras que lhes sejam convenientes. Sem conhecerem a região, os açorianos solicitam ao conde sesmarias de uma légua de testada por duas de fundo (aproximadamente 87 hectares; uma légua de sesmaria = 6,6 km) “nas cabeceiras do ribeirão Claro, por detraz das serras”, isso em 24 de abril de 1815. Não tendo sido reclamadas no prazo de trinta dias, a Casa da Câmara considerou as terras devolutas, dando parecer favorável aos solicitantes. A Carta de Sesmeiro do Ribeirão Claro é concedida em 5 de agosto de 1815.

A sesmaria do Ribeirão Claro na realidade era dita pertencer ao Cel. José Vaz de Carvalho, que afirmava tê-las recebido em 1791 da Casa do Conselho de Mogi Mirim, e que, por sua vontade, a havia doado para acomodar os novos colonos. Tais terras formavam a fazenda Casa Branca e ficavam do lado esquerdo da Estrada de Goiás, tendo campos adequados apenas à criação de animais.

Antes da concessão das terras de culturas, as primeiras famílias de açorianos começam a chegar a Casa Branca em maio de 1815, vindas de fazendas próximas: “No dia 15 do corrente devem começar sua marcha em partida de três a quatro famílias, e assim por diante, para se fazerem menos pesadas aos povos, e pouso onde hão de ficar.” As casas do povoamento deviam então estar prontas em maio de 1815, ou pelo menos parte delas. Dezenove famílias (uma delas ficara em Santos) vêm à Casa Branca para ocupar suas casas. Esperanças de progresso reascendem em todos.

A chegada dos colonos foi espetáculo raramente visto no Sertão do Rio Pardo, tendo sido bem recebidos pelos moradores da freguesia, conforme deixou escrito um casa-branquense anônimo: “O grupo de colonos desceu o declive de uma colina, na marcha dos viajantes peões, entre turbilhões de poeira, que evolava da estrada, orlada de plantas anãs e moitas de capim brabo. Encheram o povoado, encontrando nas arranchações dos casa-branquenses hospedagem obsequiadora e afável... Mal cerraram-se as cortinas impalpáveis da noite, todas as casinhas trancaram-se conforme é uso nas aldeias.”

Sobre o povo de Casa Branca e seu ambiente assim dizia d’Alincourt: “A gente é bisonha e desconfiada, o sítio saudável e alegre; as águas boas: um comprido vale coberto de arvoredo semicircunda o lugar e a ele vão dar outros menores, igualmente cobertos, cuja variedade forma uma agradável perspectiva.”

Os açorianos, vindos da ilha de São Miguel, a maior delas, e das ilhas Graciosa e Terceira, esta última com numerosas famílias flamengas, tinham tudo para melhorar a qualificação do povo de Casa Branca, tanto no aspecto físico, como no intelectual, sendo os ilhéus muito mais inteligentes e laboriosos do que os portugueses filhos do continente (seg. Borges Fortes). Os homens eram vigorosos, altos e bem proporcionados, com feições regulares e olhos bem rasgados. As mulheres eram elegantes e formosas. Para a emigração açoriana, escolheram-se casais jovens, com filhos menores, sendo que várias de suas filhas deixaram fama de grande beleza. “Uma raça de pessoas belas, fortes, inteligentes e laboriosas, com um lastro de mais de trezentos anos de civilização, muito ao contrário dos pobres mestiços do sertão do Rio Pardo” (seg. Amélia F. Trevisan).

Esse povo tão inteligente, laborioso e belo foi, entretanto, vencido pelo sertão hostil. Em fins de 1815, sem terem suas terras demarcadas na sesmaria do Ribeirão Claro, e apesar de já terem recebido o que o governo prometera: casa, junta de bois, uma vaca, sementes, duas enxadas, dois machados, uma foice, um arado e mesadas para seus sustentos por dois anos, enquanto não pudessem colher o que plantassem, os novos açorianos, repetindo o gesto dos cinco primeiros casais chegados em 1813, logo reclamam ao príncipe regente dizendo “ser a paragem péssima e terras incapazes para a agricultura, vivendo no maior desamparo com suas famílias”, e que “se mandados para mais longe e lugar ainda pior do que estão, os suplicantes então irão acabar seus dias de vida.”

O Conde de Palma temendo o fracasso do empreendimento, que tanto custara à Real Fazenda ordena que o juiz das medições de Mogi Mirim dirija-se a Casa Branca para demarcar a sesmaria. Também, por sua determinação, e após criticar duramente os ilhéus, chamando-os de invejosos e vadios, sem préstimo algum “que chegaram até a vender os próprios instrumentos da lavoura, aplicando o produto destas vendas fraudulentas para alimento de seus vícios, procurando depois separar-se da povoação, e seguir a vida de mendigos”, nomeia um engenheiro para inspecionar o estado em que se achava o núcleo de povoamento. Em janeiro de 1816, chega a Casa Branca o tenente-coronel do Real Corpo de Engenheiros, o alemão Daniel Pedro Muller. Em relatório que faz, e que é aprovado pelo conde, estavam as seguintes providências: 1. Pagamento aos três casais da primeira leva (dois outros haviam desistido, sendo seus paradeiros desconhecidos), de casas, bois, arados e diárias, pois nada haviam recebido, obrigados que foram a vender o que tinham, para poder se manter; 2. Distribuir, entre eles, a sesmaria do Cel. José Vaz de Carvalho, por ser próxima à povoação e ser adequada à lavoura; 3. Levantar novas casas, mais cômodas, nos terrenos da referida sesmaria; e 4. Nomear o capitão-mor Anselmo de Oliveira Leite diretor da povoação.

No mesmo mês de janeiro, para surpresa geral, o príncipe regente autoriza aos colonos que não estivessem satisfeitos no lugar da Casa Branca que pudessem “mudar para outro sítio que fosse melhor, podendo ir para Curitiba os que quisessem.”

Em outro relatório, mais detalhado, o engenheiro Muller recomenda que cada um dos três casais receba uma sesmaria de seiscentas braças em quadra (aproximadamente vinte hectares), onde seria erguida uma casa de palha com quarenta palmos de frente e trinta de fundo (8,8 m x 6,6 m, ou 58 m2), vendendo-se aos fregueses interessados as casas que tinham no povoado. Cada cabeça de casal receberia diária de cem réis mais quarenta réis por filho.

Em fevereiro de 1816, o padre Francisco de Godoy, nomeado que fora primeiro vigário de Casa Branca, oficializa ao governador um pedido do “povo deste Sertão” para que fossem “conservados estes ilhéus nesta terra tão fértil, e abundante, em razão de se aproveitarem, e aprenderem as manufacturas, e plantações do linho, vides e mais servissos que desezão aprender, e todos mui contentes ficaríamos com o estabelecimento delles nesta terra ao menos por 4 annos...”

O engenheiro Muller recomendava que cada um dos três casais recebesse uma sesmaria de seiscentas braças em quadra (aproximadamente vinte hectares), onde seria erguida uma casa de palha com quarenta palmos de frente e trinta de fundo (8,8 m x 6,6 m, ou 58 m2). Cada cabeça de casal receberia diária de cem réis mais quarenta réis por filho. Casa rústica de fazenda. Tela de Benedito Calixto.
Em tarde chuvosa de fevereiro de 1816, em uma das casinhas do povoado, o capitão-mor Anselmo Leite, mineiro de Vila Rica, capitão de ordenanças a cavalo, e que por essa época era o único senhor de engenho da freguesia, reúne-se com os colonos e o padre Godoy, para importante comunicação.

— Primeiro — disse ele — quero comunicar que recebi notícias da Corte de D. João, Nosso Senhor e Príncipe Regente, confirmando o agravamento da saúde de nossa rainha D. Maria I (que morreria em 20 de março desse ano). — Que Deus a preserve de seus males, e que o padre Francisco possa rezar missa em sua intenção, na capela que ainda está por se concluir.

Em seguida, o capitão-mor passa a ler ofício do Conde de Palma, dando conta de que o Cel. José Vaz de Carvalho cedera uma sesmaria que tinha nas vizinhanças da freguesia da Casa Branca, ficando, por esse modo, remediada, em grande parte, a queixa dos ilhéus por lhes terem concedido terras a grande distância da freguesia.

— As terras de cultura do Ribeirão Claro, e que nem se prestam a esse propósito — diz o ilhéus Manuel Antonio Machado, — distam três léguas da povoação, o que representa viagem de ida e volta de seis léguas (25 km). — Quando lá se chega quase está na hora de se voltar, conclui ele, provocando aplausos e muitos risos.

— Estamos já cansados de tantas promessas, e de promessas o inferno está cheio! — pondera outro dos açorianos, de nome Manuel Espínola Bitencourt —desculpando-se, ao padre Godoy, pelo “inferno” dito de forma tão enfática, em momento de muita ira. — Tais promessas só criaram o desamparo em que estamos vivendo, fora de nossa pátria.

A reunião estende-se por toda a tarde. A insistência do padre e do capitão-mor para que ficassem em Casa Branca, só consegue motivar quatro dos ilhéus, que se mostraram satisfeitos com o que tinham (eles haviam aproveitado a proximidade do pouso da Casa Branca e passaram a comercializar com os viajantes, em suas casinhas, estando, assim, em melhores condições econômicas). Os demais se mostraram irredutíveis. Queriam ir embora. As condições impostas por um grupo dos ilhéus eram claras: só ficariam na capitania se fossem para uma das fazendas, ou Santa Cruz ou Cantagalo. Outro grupo, em número de quatro, decide partir imediatamente para Curitiba, o que era permitido no decreto de D. João.

Em março, preocupante notícia percorre o povoado. Cinco dos ilhéus haviam fugido, com intenção de exporem pessoalmente à Corte o seu drama. O sargento-mor José Garcia Leal envia tropa ao seu encalço, encontrando-os bem distante dali. Trazidos de volta ao povoado, e após a comunicação do fato, o Conde de Palma autoriza que quatro deles sigam para Curitiba, o que só não se concretiza por doença do capitão-mor, substituído, em suas funções, pelo sargento-mor, que ordena que sigam para São Paulo.

Passado um ano sem que se resolvesse o impasse, e após nova negociação encabeçada pelo tenente-coronel Muller, em 5 de fevereiro de 1817 o capitão-general de São Paulo recebia o relatório da reunião, com as decisões acordadas: sete ficariam em Casa Branca, cinco iriam para a fazenda do Cubatão, três para a fazenda de Santana, seis para a vila de São Carlos (Campinas) e um para a cidade de São Paulo. Dos sete que optaram por ficar, um deles acabou desistindo mais tarde, dirigindo-se para a vila de São Carlos.

Despovoa-se, assim, Casa Branca, com a saída de setenta e seis moradores, permanecendo quarenta e quatro, com vários filhos nascidos na freguesia. O sertão vencera a burocracia e o descaso das autoridades.

A saída da maior parte dos açorianos de Casa Branca, em 1817, marcou o fracasso do assentamento planejado e subsidiado pela Real Fazenda e “debaixo da Augusta Proteção de Sua Majestade”, como escrevera o engenheiro Muller.

A colonização da sesmaria do Ribeirão Claro pelos açorianos talvez tivesse tido sucesso não fosse por um acontecimento curioso, narrado por Saint Hilaire: “As casas que formam a rua principal de Casa Branca, em número de vinte e quatro, foram construídas para famílias de açorianos que haviam sido trazidas para povoar a região. O governo pagara todas as despesas de viagem, e a cada família tinha sido dada uma casa, bem como implementos agrícolas e meia légua de terra coberta de mata. Os recém-chegados se assustaram diante do tamanho das árvores que tinham de derruba para fazer o plantio. Dezoito famílias fugiram, atravessaram a Província de Minas Gerais e foram lançar-se aos pés do rei, suplicando-lhe que as tirasse de Casa Branca. Foram-lhes dadas outras terras, perto de Santos, e a Vila de Casa Branca ficou praticamente abandonada.”

As terras da Casa Branca tinham matas virgens exuberantes, com perobeiras imensas, impossíveis de serem derrubadas por um só homem, ainda mais sem escravos. Por isso, os ilhéus pediram (segundo relato do sargento-mor José Garcia Leal) “sua saida para o Cubatão de Santos e Campinas com medo dos páos groços de perova que havião nas ditas terras, e foi certamente o que os desanimou.”

A burocracia, à qual se somavam o descaso das autoridades, as promessas vãs, a falta dos títulos das terras e os parcos proventos, aliados à falta de vocação agrícola das terras que lhes foram destinadas e à enorme distância que ficavam do povoado, colaboraram grandemente para o insucesso da colonização. Mesmo assim, os que partiram não deixaram de reclamar à sua majestade dos novos lugares para onde foram mandados, o que pôs em dúvida o caráter dos açorianos e se eram eles de fato bons trabalhadores, como se pensava. Para os que não foram, os infortúnios continuaram, agora com relação à legitimidade das terras.

Assim, uma sentença passada em Mogi Mirim em 1817, a favor de Antônio Soares do Prado, contra a legitimidade da sesmaria do Cel. José Vaz de Carvalho, que fora doada aos açorianos e que era contígua ao povoado, causa grande alvoroço, pois ainda os seis ilhéus não haviam recebido os títulos de suas terras.

O quinhão que cada um recebeu fora marcado em fevereiro de 1816 pelo juiz sesmeiro e pelo piloto (agrimensor), ambos da Casa da Câmara de Mogi Mirim. Para isso, como era costume na época, o sargento-mor “girou os matos” com um alferes, e a partir do pião, que era o marco inicial de medida da sesmaria, deu rumo à mesma, indicando, com cordas esticadas, a linha reta que deveria roçar fazendo picada, ou escavar o valo que marcaria os limites da sesmaria.

Cada sesmeiro tinha recebido uma área de seiscentas braças de frente por uma légua de fundo e suas casas haviam sido construídas de pau-a-pique e cobertas de sapé, “sendo intimados os povos para ajudarem aos ilheos na edificação de suas casas, e tocou-lhes como imposto 20 duzias de ripas.”

Ameaçados de expulsão das terras, que já estavam cultivando, os ilhéus se mobilizam pelos seus direitos. Depois de demorada ação judicial, que ocupa todo o primeiro semestre de 1818, o capitão-mor Anselmo Leite, reconduzido ao seu posto de diretor do povoado em março de 1817, cai em desgraça logo após a ida à Corte do sargento-mor José Garcia Leal, onde expusera ao intendente de polícia a verdadeira situação da colônia dos ilhéus. José Garcia Leal tinha ido ao Rio de Janeiro comprar escravos para seu engenho.

Destituído de sua função “por ter abandonado os casais da Povoação de Casa Branca, não lhes dando direção alguma”, Anselmo é substituído pelo sargento-mor, que, assim, se torna o homem forte do povoado.
A posse definitiva das terras só sairia em novembro de 1821, por ação do intendente de polícia junto à Corte, que assegurou aos ilhéus e aos posseiros que a eles se avizinharam, o direito de nelas permanecer. A propriedade ficou conhecida com fazenda Cachoeira dos Ilhéus, dividida em várias outras pelo final do século XIX: Morro, Bom Jesus, Prata, Morro dos Ilhéus, Capão Doce e outras.
Continua.

Referência.
Paschoal, A.D. História de uma família. Genealogia à luz da história. Tomo I. Séculos VIII a XIX. 430 p. Piracicaba, 2007.


Aspectos Históricos da Agricultura Paulista: Parte 8. A estrutura e as técnicas agrícolas coloniais.

Adilson D. Paschoal
Professor Sênior da Esalq-USP


Séculos XVI a XIX. Uma história de concorrências. Sistema camponês da Metrópole e de plantação da Colônia. Consequências da mineração na agricultura brasileira. Com a Revolução Industrial o renascimento agrícola: pecuária, fumo, algodão, arroz e açúcar.



A agricultura no Brasil Colônia foi marcada por concorrências, daí seus altos e baixos. Quando a cana-de-açúcar foi trazida da ilha da Madeira para o Brasil, na terceira década do século XVI, ela aqui foi cultivada em sistema muito diferente do local de origem. Lá, na ilha, todo o processo de produção da cana e da manufatura do açúcar era feito pela família proprietária da terra, no sistema tradicional camponês europeu, diversificado, de policultura e de pequena escala. Nas áreas continentais do Brasil isso não ocorreu, adotando-se o sistema de plantação (plantation), de monocultura para exportar, em áreas extensas e com mão de obra escrava, controlada por feitores e capitães do mato, morando os proprietários geralmente em vilas e cidades. Nesses moldes, a monocultura canavieira impediu o surgimento de pequenos e médios proprietários, que, quando existiam, produziam para subsistência, dependendo do grande proprietário para processar o açúcar ou para comprar a sua produção; muitos deles, sem recursos, tornavam-se agregados, vivendo na propriedade do senhor, prestando-lhe serviços.

Aprendido de indígenas, que escravizavam tribos rivais, os portugueses que vieram para a Capitania de São Vicente passaram a escravizar os índios para trabalho nas lavouras e nos engenhos de açúcar. Pela mesma razão, os que vieram para as capitanias de Pernambuco e da Bahia, passaram a escravizar negros trazidos do continente africano.

Tal estrutura modifica-se no século XVII, com o ciclo do ouro em Minas Gerais, com a expulsão dos holandeses do Nordeste e com a proibição da escravatura dos índios em todo o Brasil, ocasião em que o trabalho nas lavouras e nas áreas mineradoras passa a ser totalmente feito por escravos africanos.

A concorrência do açúcar brasileiro de plantação fez perecer o açúcar camponês madeirense. A produção mais barata e eficiente do açúcar do Nordeste, região mais próxima da Metrópole, selou a produção do açúcar em Santos e em São Vicente. Com a expulsão dos holandeses de Pernambuco e da Bahia, a produção do açúcar nordestino entra em colapso, pela concorrência do açúcar das Antilhas holandesas, produzido com custo menor e com melhor qualidade. A decadência dos senhores de engenho nordestinos e o fim do ciclo do ouro mineiro criam nova oportunidade para a canavicultura paulista desenvolver-se no século XVIII.

Aprendido de indígenas, que escravizavam tribos rivais, os portugueses que vieram para a Capitania de São Vicente passaram a escravizar os índios para trabalho nas lavouras e nos engenhos de açúcar, depois substituídos por negros africanos. Engenho de açúcar. Litogravura de autor desconhecido.

Por pelos menos setenta anos do século XVIII a mineração foi a atividade econômica principal da Colônia, desenvolvendo-se em detrimento das demais, principalmente da agricultura. Consequência do pólo econômico ter-se transferido da região açucareira nordestina para Minas Gerais foi a decadência das capitanias de Pernambuco e da Bahia, o que perdura por quase um século. Os senhores de engenho, abatidos com a crise do açúcar e interessados em avultados lucros, passam a vender grande parte de sua mão de obra escrava para a região das Minas, esvaziando os canaviais, mas mantendo o lucro. A própria capital da Colônia, Salvador, mudara-se para o Rio de Janeiro, por onde saia toda a riqueza mineral. A Capitania de São Paulo, despovoada pelo êxodo para as Gerais, tornara-se uma das mais pobres da Colônia. O Reino só tinha olhos para as minas de ouro e de pedras preciosas.

O aglomerado humano fantástico na região mineira, determinado pela corrida ao ouro, embora esparso e separado entre si por áreas desertas imensas, cria desabastecimento de gêneros alimentícios, originando fome generalizada na região, principalmente nos anos de 1697, 1698, 1700, 1701 e 1713. Para poder abastecer a população, a agricultura e a pecuária são incentivadas não só na Capitania das Minas Gerais, como também naquelas do Rio de Janeiro e de São Paulo. As crises de fome, que levaram à dispersão dos mineradores, resultam na descoberta de novas jazidas; ao mesmo tempo, começa se implantar, nos quintais das casas, pequena pecuária, principalmente de suínos.

Da maior importância eram os senhores de engenho, que produziam açúcar e aguardente, além de se ocuparem da criação de gado e produzirem alimentos de subsistência, tendo numerosos escravos. Engenho de açúcar. Detalhe da tela de Benedito Calixto.

O esgotamento das reservas auríferas e a exclusividade da Coroa na exploração de diamantes levam os mineiros a se dedicarem intensamente à agricultura e à pecuária. As mudanças econômicas vão ocorrendo gradativamente sem causarem profundas interferências na ordem social vigente. À medida que as lavras de ouro iam se fechando, o governo lusitano concedia sesmarias com a obrigação de seu uso na criação animal. Dessa forma, após a decadência da mineração, o território aurífero torna-se importante centro agropecuário. As vilas, porém, não conseguem mais manter a importância que tinham, estagnando-se econômica, política, social e culturalmente.

Dava-se às terras que não tinham dono o nome de sesmaria (de sesmar = partilhar, dividir). Quem obtinha sesmaria devia começar o seu cultivo ou criação no mesmo ano em que era outorgada, caso contrário retornaria ao governo. As despesas para adquiri-la podiam chegar a 100$000 (cem mil réis). Um quarto de légua de sesmaria (1,65 km) de terra boa podia valer quinhentos mil reis. As terras pertenciam a quem as descobrisse. Para estimular a colonização de áreas desertas, a Coroa isentava de impostos, por dez anos, quem entrasse pelas florestas a fim de “fazer desmoitados.”

O solo pobre da região das minas, totalmente degradado pelos mineradores, e seu relevo montanhoso, constituíam obstáculos sérios à agricultura, obrigando aos mineiros abastecerem-se de gêneros alimentícios vindos de fora. Servem-se principalmente da região sul de Minas que, pelas condições agronômicas mais propícias, permitia o desenvolvimento de uma economia agrária significativa. Pela distância considerável do litoral e pela ausência de estradas adequadas ao escoamento da produção, feita toda ela ainda por dois caminhos precários, em lombo de burros, não se desenvolve aí uma agricultura de alimentos de alto valor comercial, como o açúcar das regiões litorâneas. Apesar disso, a região sul mineira alcança, com a agricultura (pecuária, principalmente), nível de relativa prosperidade.


O esgotamento das reservas auríferas e a exclusividade da Coroa na exploração de diamantes levam mineiros, paulistas e cariocas a se dedicarem intensamente à agricultura e à pecuária. Entardecer. Hora de descanso. Tela de Benedito Calixto.

Embora se desenvolvesse em toda a Colônia, é, sobretudo, nas Minas Gerais que a criação animal atinge o seu mais alto nível, principalmente a de gado leiteiro. As fábricas de laticínios tornam-se notáveis, principalmente de queijos. Na região sul das Gerais também aparece, como importante, a cultura do fumo e a elaboração de fumo em corda. O fumo e a aguardente eram indispensáveis ao árduo trabalho dos escravos nas minas, convertendo-se, depois, em vícios.

Enquanto os mineiros tinham recursos financeiros suficientes para a compra de comida, de vestimenta, de animais e até mesmo de artigos de luxo, provenientes de toda a Colônia e da Metrópole, os demais sofriam com a debandada de alimentos, animais e prestadores de serviço, caso da Capitania de São Paulo. A especulação sobre os produtos chega a níveis alarmantes, obrigando às casas de conselhos interferirem para impedir a falência social e econômica das vilas e cidades, pois enquanto os produtos se tornavam cada vez mais caros e inacessíveis, profissionais como ferreiros, padeiros, marceneiros e oleiros transferiam-se para o emergente e promissor mercado das Minas Gerais.

O renascimento agrícola da Colônia atinge seu apogeu entre 1770 e 1808 devido a dois importantes fatores: o crescimento demográfico europeu e a Revolução Industrial inglesa, que substituía, progressivamente, o capitalismo comercial pelo capitalismo industrial. Os mercados e os produtos das colônias européias multiplicam e valorizam. A máquina a vapor (de 1769) e o tear mecânico (de 1787) aperfeiçoam a tecelagem, aumentando o consumo de algodão, o que favorece o Brasil. Planta tropical das Américas, o algodão já era conhecido dos silvícolas, que com ele teciam suas redes. Disso aprenderam os portugueses, que passaram a utilizar as fibras para tecerem panos rústicos, usados para vestir os escravos e a classe mais pobre da população. O Maranhão se destaca, e torna-se uma das mais prósperas capitanias. Nas Minas Gerais, o algodão aparece principalmente na área fronteiriça com a Bahia. Diferentemente do açúcar, o processamento do algodão — o ouro branco —, é simples, consistindo no descaroçamento e no enfardamento, possíveis de serem feitos pelo produtor ou por um beneficiador. O arroz é outra cultura que se desenvolve bem no Brasil. O processamento mecanizado, com as novas técnicas da Revolução Industrial, tanto da cana-de-açúcar, como do algodão e do arroz ensaia seus primeiros passos.

O açúcar também renasce, após quase um século, na região litorânea nordestina. Na Capitania de São Paulo, é no planalto, e não mais no litoral, que a cana-de-açúcar avança, graças aos incentivos de Morgado Mateus. No litoral, Ubatuba, São Sebastião e Ilha Bela produziam cana para produção de aguardente. No vale do Paraíba a cana foi plantada em extensa área, quase até o Rio de Janeiro, que já era grande produtor, não se constituindo em monocultura graças a outras culturas econômicas. O “ciclo do açúcar” paulista achava-se concentrado no quadrilátero formado por Sorocaba, Piracicaba, Mogi Guaçu e Jundiaí.

Na Capitania de São Paulo, é no planalto, e não mais no litoral, que a cana-de-açúcar avança, graças aos incentivos de Morgado Mateus. Engenho caseiro, para a produção de rapadura, garapa e aguardente. Pequena moenda portátil. Gravura de Jean Baptiste Debret.

Mas a agricultura da Colônia estava fadada ao fracasso. Em mãos inábeis, e ao contrário do que ocorria em outras regiões, a agricultura colonial brasileira tropeça em seus próprios pés. Inculto, com exceção dos mais nobres, que podiam estudar seus filhos varões na Europa, o colono brasileiro pratica agricultura primitiva, de baixa produtividade. Somente em alguns lugares se tem acesso ao conhecimento, na Cadeira de Primeiras Letras (latim e grego), instituída em 1776. Da mesma forma que se fazia desde o início da colonização, as matas são derrubadas, queimadas e seus restos enleirados e queimados de novo, até virarem cinza. Sendo a cinza o único adubo que vem ao solo, as culturas produzem cinco ou seis colheitas, sendo depois abandonadas. Sempre em busca de terras frescas, que não exijam maiores esforços de sua parte, os colonizadores vão semeando desertos, obrigando ao seu deslocamento contínuo. Isso explica o porquê da vinda de mineiros de volta para São Paulo.

“Onde não há mata não existe agricultura”, diziam antigos fazendeiros. Por isso, as matas foram derrubadas, queimadas e cultivadas por poucos anos, sendo abandonadas em seguida. Nos solos degradados formavam-se capoeiras, de vegetação aberta, invadida e dominada pelo capim gordura, verdadeiro flagelo colonial, introduzido em Minas, espalhando-se depois em outros lugares. Derrubada de mata. De autor desconhecido.

Conduzida por escravos de origem africana, as monoculturas tropicais vão perdendo rapidamente a sua produtividade. As terras, sem os estrumes animais, enfraquecem, o que pouca importância tem, uma vez que as reservas de recursos são quase ilimitadas. As matas vicejam por todos os cantos e sob elas acumulam-se reservas que podem produzir colheitas abundantes, mesmo que sejam por curto período de tempo. O agricultor colonial e seus escravos só conhecem o fogo, o machado, a enxada e algumas poucas variedades de culturas. A cana crioula atravessa séculos de uso nos engenhos, ainda movidos à tração animal; só em 1790 é que se introduz a cana caiena. A milenar chuka, trazida do oriente, era a única máquina com a qual o algodão era descaroçado. As tropas nem sempre levavam apenas o que era desejado. Por volta de 1788, um almocreve carrega suas bestas no litoral. Junto à carga, um capim (capim-gordura), vindo da África, que logo é espalhado pelas terras das Minas Gerais, tornando verdadeiro flagelo, obrigando agricultores e criadores a abandonarem suas terras.

Outro fator da decadência rápida da agricultura foi a maneira como a Fazenda Real penalizava os dizimeiros que, na impossibilidade de cumprirem com as cláusulas dos contratos, tinham suas sesmarias e outros bens confiscados e depois vendidos em hasta pública, concedendo-se, aos arrematantes, prazos muito longos para os pagamentos. Muitos adquiriam os bens sem sequer terem dinheiro e também sem terem a esperança de um dia poderem ser seus donos.

A Colônia continuava isolada do progresso. Assim, não fosse por uma nova cultura, o café, a agricultura colonial do Brasil teria enfrentado novo colapso já no início do século XIX.

No Caminho Velho dos Paulistas, assim como na Estrada Real, em terras de sesmarias, muitas fazendas surgiram e prosperam durante o ciclo do ouro, fornecendo víveres aos viajantes que se dirigiam às Minas Gerais. Os produtos delas (feijão preto, arroz, farinha de mandioca, toucinho e aguardente, além de milho para os animais), eram comercializados em vendas à beira dos caminhos, tocadas por escravos da confiança de seus donos, e que tinham nelas o lucro de suas produções. Casa de fazendeiro. Gravura de Johan Moritz Rugendas.

Continua.

Referência.
Paschoal, A.D. História de uma família. Genealogia à luz da história. Tomo I. Séculos VIII a XIX. 430 p. Piracicaba, 2007.