Adilson D. Paschoal
Professor Sênior da ESALQ-USP
Muito próxima da fronteira com a Capitania de São Paulo, uma tropa conduzida por mineiros arrancha para mais uma noite.
— Não longe daqui, afirma o guia, passa o rio Pardo, no sertão do mesmo nome, e por onde seguem numerosas tropas no Caminho de Goiás.
O tenente Urias Emídio Nogueira de Barros, que se iniciava como sertanista, responde que muito lhe agradaria conhecer a região. Mais tarde voltaria, pois chegara o momento de retomar o caminho de casa. Os mantimentos escasseavam e o cansaço se fazia notar. Tomando rumo de Alfenas, segue a tropa pelo vale do Sapucaí, retornando a Baependi.
Em 1811, um ano após sua primeira desafiadora aventura pelo território sul mineiro, o tenente Urias, de 19 anos, parte, com tropa, para o Sertão do Rio Pardo, que ele muito desejava conhecer. Os habitantes dos lugarejos por onde passara em sua primeira excursão, em sua maioria desqualificados, e a falta de perspectiva futura desta região sul mineira, causaram-lhe profundo desinteresse em adquirir aí terras, com o que concordara seu pai, o capitão João de Sousa Nogueira. Deveria seguir adiante, para a Capitania de São Paulo, como muitos outros mineiros estavam fazendo. O vazio causado pelo extermínio dos quilombolas deste imenso território do sul de Minas só seria preenchido bem mais tarde, por imigrantes italianos, que ocupariam seus antigos povoados.
Seguindo pelo mesmo caminho da viagem anterior, Urias chega, pela segunda vez, ao arraial de Cabo Verde, de onde prossegue até a freguesia de Nossa Senhora da Conceição das Cabeceiras do Rio Pardo (Caconde, 1755), já em terras paulistas; nesse lugarejo, ouro brotara em 1765 e, depois, em 1781. Escasseando o metal, apenas fazendeiros permaneceram no lugar e muitos outros vieram assenhorear-se de novas terras, requerendo sesmarias, ou obtendo glebas por compra e posse. Em 1811, ano em que Urias por aí passava, numerosas posses e pedidos de sesmarias haviam sido concedidos. Prosseguindo na viagem, a tropa chega às barrancas do caudaloso rio Pardo, lugar deserto, coberto por espessa vegetação, que escondia sob si fertilíssimas terras. Nada havia aí senão algumas malocas indígenas, sendo Urias o primeiro dos Nogueira de Barros a pisar esse território. Pela primeira vez ele se entusisma com o que vê.
“Seria esta a terra prometida?”, conjetura ele.
Pouco mais tarde, em 1815, o sesmeiro português, capitão Alexandre Luís de Mello, vindo de Minas Gerais, colonizaria as terras entre os afluentes do rio Pardo: os rios Fartura e do Peixe. O clã dos Nogueira de Barros viria mais tarde se estabelecer nesse lugar, e uma freguesia surgiria cinco décadas depois, com o nome de São José do Rio Pardo (1865), fundada por um sobrinho do tenente Urias.
Para a travessia do grande rio, havia uma passagem que fora arrematada, em 1766, junto com as passagens dos rios Mogi Guaçu, Jaguari e Sapucaí, por 206$000.
─ Convém não parar por aqui ─ disse o guia a Urias ─, pois estas águas são muito pestilentas, transmitindo febres intermitentes, de época em época.
Urias olha para as águas marrons do grande rio e acha mesmo que elas não deveriam ser boas para beber.
─ Além disso ─ continua o guia ─ os índios dizem que em tempo de cheia do rio aparecem aqui bichos monstruosos, ora parecidos com porcos, ora com touros, que põem em debandada os mais corajosos...
Como o rio estava ainda cheio, pois era início de abril, o jovem tenente resolve partir. Pagando pedágio, por conta do fisco, da ordem de quatrocentos réis por pessoa, sessenta réis por mula e vinte réis pela carga de cada animal, Urias ouve o guia reclamar do elevado custo para a travessia do rio, com o que acaba concordando.
Cruzando em canoa, com muita dificuldade, o caudaloso rio Pardo, seguem os viajantes rumo ao Caminho de Goiás. Na altura do pouso da Casa Branca (Casa Branca, 1727;1814), encontram-se com carreteiro que conduzia um carro de boi carregado de toucinho e de algodão. Vestia, como a maior parte dos habitantes pobres destas plagas, simples calção e camisa grosseira de algodão; com a mesma simplicidade se trajavam as mulheres, com modestas saia e blusa. Perguntado sobre si, responde que vinha do arraial de Franca (Franca, 1805), e estava indo a São Paulo vender suas mercadorias e trazer de lá sal (proveniente de Santos) e ferro (proveniente da forja de Ipanema). Fazia isso uma vez por ano, pois a viagem de ida e volta demorava mais de mês. Na choupana que tinha à beira da estrada, vendia milho para os tropeiros. Informado que o tenente Urias era mineiro, logo se abre em conversa animada.
— No arraiá di Franca — diz ele — só tem mineiro, qui dexô suas terra pur achá qui as que tinha era poca, u entonces purque fugia da justiça u di seus credô. Incontraru terras dispovoada, solo bão, e pastage da mió qualidade, e delas tomô conta. É lugarejo pirigoso, que conseio a mecês num pará pur muito tempo. Tem criminoso a dá cum pau pur aquelas banda...
Como era em sentido oposto àquele arraial que os viajantes se dirigiam, a recomendação do carreteiro foi de pouca valia.
Desde Franca, as montanhas dão lugar a imensa chapada, com altitudes moderadas (entre 800 e 1000 m), com campos mais abertos, quase sem as árvores mirradas dos campos acima desse lugarejo, o que permite descortinar vasto horizonte. A largueza das terras do pouso da Casa Branca e a vastidão dos campos cobertos de verdejantes capim-flexa e barba-de-bode, paisagem essa jamais vista por Urias, causam-lhe impressão favorável.
A terra poder não ser tão boa para lavoura — comenta o tenente com o seu guia —, porém estes campos abertos podem acomodar grandes rebanhos sem que se tenha de derrubar mato. Além disso, há muita mata à beira dos ribeiros, que devem dar excelente água e ser terra muito produtiva. Aqui, sim, poderemos nos estabelecer e criar nosso gado.
Seguindo pelo Caminho de Goiás em direção a Mogi Mirim, os viajantes encontram muitos paulistas estabelecidos à beira da estrada, quase todos mamelucos (caboclos), ignorantes, apáticos e grosseiros, vestidos rudemente e sempre muito sujos, assim como suas parcas moradias. Encontram, também, muitos mineiros, vindos da comarca de São João Del Rei. Esses eram brancos em sua maioria, e, conforme observara Saint Hilaire: “a limpeza reina em suas casas; eles são mais ativos, bem mais inteligentes, menos descorteses e mais hospitaleiros que os legítimos paulistas dessa região. Numa palavra, eles conservam todos os hábitos e costues de sua terra.”
Urias já havia sido alertado pelo seu pai sobre os modos dos paulistas, que herdaram a rudeza de seus antepassados, não recebendo nenhuma educação religiosa, fazendo justiça pelas próprias mãos. “Chumbo na cabeça, faca no coração”, era o que mais se ouvia neste sertão sem lei. A vinda de muitos criminosos mineiros para o nordeste de São Paulo também contribuira para acirrar seus ânimos.
Deixando o pouso da Casa Branca, a tropa avança por região ondulada, de capões e campos, marchando por cinco leguas e meia (22 km) até as margens do rio Jaguari Mirim, afluente do rio Pardo, que corta a estrada. Havia aí mais uma passagem, que pertencera, como todas as outras, ao filho do “Anhanguera”, descobridor das minas de Goiás, mas que desde 1778 era administrada por um sargento-mor, em conjunto com a Fazenda Real. A partir desse ponto, a tropa encontra maior número de casas e a primeira venda, indicativos da proximidade de povoamentos maiores e do fim dos sertões.
À margem esquerda de outro grande rio ─ o Mogi Guaçu ─, que em tupi significa “grande rio das cobras”, onde havia nova passagem, desponta o pequeno e antigo arraial de mesmo nome, antes conhecido por freguesia de Conceição do Campo (Mogi Guaçu, 1728), com sua igreja e suas poucas casas. A passagem pelo rio se faz por ponte de madeira, mal conservada, estreita e sem parapeito, verdadeiro perigo para as mulas de carga. O rio fornecia excelentes peixes; porém, assim como o Pardo, com o qual se junta, tinha fama de ser causador de febres, devido seus inúmeros lamaçais. Contava-se no arraial que uma epidemia havia matado muita gente tempos atrás, quando centenas de peixes apodreceram no rio, mortos por timbó usado por pescadores. O ar se tornara pestilento, causando terrível doença.
A poucas léguas desse arraial surge a primeira vila paulista que o tenente Urias vem a conhecer: a vila de São José de Mogi Mirim (Mogi Mirim, 1719). Um dos primeiros moradores do antigo arraial tinha sido Sebastião Leme do Prado, parente da sua bisavó Maria Leme do Prado. Criada em 1769, a vila abrangia enorme território municipal, tendo por limites os rios Atibaia e Grande, este na divisa entre São Paulo e Minas Gerais. Com o passar do tempo, foram se formando arraiais e povoados no extenso município de Mogi Mirim, dentre os quais Franca, Batatais, Casa Branca e Mogi Guaçu. As casas, em geral pequenas, baixas e de pau a pique, feitas de barro cinzento, e as muitas vendas mal providas, davam à vila aspecto tristonho. Seus moradores eram agricultores, e para ela só vinham aos domingos. Acostumado aos padrões mineiros, Urias comenta: “Se fosse em Minas, esta vila não seria mais do que sede de paróquia.”
Nas fazendas criavam-se muitos porcos e havia vários engenhos de açúcar e destilarias de aguardente. Os grandes fazendeiros vendiam o açúcar para negociantes paulistas, que vinham adquiri-lo diretamente nas fazendas, pagando à vista, embarcando-o no porto de Santos, com destino ao Rio de Janeiro. A cana se plantava e colhia por dois anos, sendo depois replantada. Após cinco anos de cultivo, a terra era deixada descansar por três anos, quando crescia capoeira, logo cortada e queimada, fazendo-se novo plantio, aproveitando-se as cinzas como adubo.
Em Mogi Mirim, o tenente Urias toma os primeiros conhecimentos acerca do tropeirismo paulista. Assim como Campinas e Jundiaí, situadas na mesma Estrada de Goiás, Mogi Mirim fornecia boa parte dos “camaradas” que acompanham as tropas de burros, que partem da capital em direção a Goiás e Mato Grosso.
“Um tocador de tropa”, disse a Urias o dono do rancho grande onde o tenente havia se hospedado, “recebe de vinte a trinta mil réis para ir de São Paulo à Vila Boa, uma viagem de quatro meses. O chefe da tropa fornece a alimentação de todas as montarias dos seus camaradas, mas apenas para a ida. O arreador recebe pelo número de mulas que cuida e guia. Antes da partida, o chefe dá os adiantamentos necessários para a compra de burros e mercadorias, e, à chegada, essa quantia é descontada do dinheiro que o camarada tem a receber.”
A estada em Mogi foi curta. Deixando a vila, a tropa caminha por vasta campina, que aos poucos é substituída por densa floresta, à medida que se aproxima da Borda do Campo. Às margens do rio Jaguari Guaçu (rio Jaguari, na altura de Jaguariúna) havia nova passagem, com pedágio cobrado mais uma vez, cruzando-se o rio por ponte estreita, sem proteção lateral e fechada por porteira, que só se abre para quem paga o tributo. Essa passagem fora arrematada em 1795, ficando os seus arrematantes com o direito de “tapar os caminhos do rio Pardo para Jacuí e da Ressaca para Atibaia, a fim de evitar que haja pouca afluência de pessoas na Passagem do Rio Jaguari-Guaçu.” Um novo rio logo é avistado em meio à mata ─ o rio Atibaia ─, que, com o Jaguari, forma o rio Piracicaba, afluente do Tietê. Novo pedágio e nova reclamação do guia. Urias acaba se convencendo que se tivesse de adquirir alguma terra ela teria de estar não tão longe da vila de São Carlos (Campinas), pois desse local para frente, até o porto de Santos, não havia mais cobranças.
A medida que caminham, os viajantes vão contando dezenas de grandes engenhos de açúcar. A estrada torna-se mais movimentada com o vai e vem dos tropeiros e de mulas carregadas de açúcar. Os ranchos são agora maiores, de paredes de taipa e cobertura de telhas ─ os reais, como são chamados ─ erguidos e mantidos pelo fisco. O sertão ficara mais distante. Aproxima-se a vila de São Carlos (Campinas), totalmente rodeada de matas, com as casas de barro cobertas de telhas, onde agricultores haviam obtido grande sucesso ao plantarem cana em terra de cor vermelho escuro, ao invés de terra preta, como se fazia em Itu.
Alojado em uma fazenda, onde o guia havia pedido pouso, e de que era proprietário certo capitão-mor, o tenente Urias conhece a sede, uma bonita casa, cujas paredes, dos quartos e das salas de visita e de jantar, eram pintadas a óleo até meia altura, depois caiadas até o teto, sendo ornadas com guirlandas de flores.
“O termo de São Carlos”, disse-lhe o capitão, “é hoje o maior produtor de açúcar e aguardente da Capitania de São Paulo; conta com quase seis mil almas, das quais quase a metade é de escravos negros e mulatos. Com vinte escravos um fazendeiro pode produzir 2.000 @ (30 t) de açúcar. Para o transporte até Santos, paga-se a um tropeiro a quantia de trezentos e quarenta a quatrocentos réis por arroba, em viagem de doze dias.”
A conversa foi muito instrutiva para o jovem tenente, que anota, em seu caderno de viagem, muito do que ouvira do experiente capitão, para depois poder transmitir aos seus familiares.
Na fazenda, chama a atenção de Urias uns jacás achatados, quase quadrados, colocados nos flancos de cada besta de carga, servindo para o transporte de sacos de açúcar, de modo a que cada animal levasse oito arrobas, quatro de cada lado. Urias achou-os muito parecidos com os cestos que, em Minas, eram usados para transportar queijos. Por outro lado, desagradam-lhe as maneiras pouco corteses dos paulistas das classes mais baixas, que viviam à margem da estrada. Na expressão do viajante francês Saint Hilaire, tratava-se, geralmente, de gente pouco instruída, “... de expressão fria, estúpida, triste e apática”, muito diferente dos mineiros de sua região.
Da vila de São Carlos (Campinas), em direção à vila de Nossa Senhora do Desterro de Jundiaí (Jundiaí, 1665), o terreno começa a se tornar montanhoso, logo surgindo nova serra (serra do Japi), próxima à vila. Matas densas cobrem toda a estrada. As mulas da tropa começam a emagrecer, pois não mais existem os campos com capins verdejantes e nutritivos; apenas cresce capim nas áreas onde as árvores foram derrubadas.
A vila de Jundiaí pouco difere da vila de São Carlos. Seus moradores também são agricultores, que só vêm à vila aos domingos e feriados; durante a semana, as casas permanecem fechadas. Chama a atenção dos viajantes o número de pessoas com bócio, os chamados papudos de Jundiaí. Para curar a doença, recomendava-se tomar água à qual se acrescentava um pouco de terra de cupim, ao mesmo tempo em que se aplicavam cataplasmas dessa mesma terra sobre o papo.
O número de camaradas fornecidos às tropas superava o de Mogi Mirim, sendo, pelo que se pode apurar, melhores do que todos os demais. A maior parte das tropas de burros que partia de São Paulo para Goiás e Mato Grosso era organizada nas terras de um capitão-mor de Jundiaí, que comprava milhares de muares na vizinha vila de Sorocaba, revendendo-os, em lotes, aos chefes de tropas, arranjando-lhes, também, provisões e camaradas. A riqueza em terras deste fazendeiro impressiona muito ao tenente Urias, que passa a colocar mais fé no tropeirismo, acreditando mesmo que poderia fazer dele o seu ganha pão.
Continua.
Referência.
Paschoal, A.D. História de uma família. Genealogia à luz da história. Tomo I. Séculos VIII a XIX. 430 p. Piracicaba, 2007.
Século XIX. O esgotamento do ouro traz mineiros para São Paulo. Desbravando o sertão do Rio Pardo. Trilhando o Caminho de Goiás até a vila de Jundiaí. O sertão sem lei: usos e costumes. Tropismo, fazendas e engenhos de açúcar e aguardente. Comércio de açúcar.
No início do século XIX, a região ao longo dos caminhos paulistas recebera fluxo populacional de grandes proporções, com mineiros oriundos do sul de Minas e goianos do Sertão da Farinha Podre (Triângulo Mineiro). Vinham criar gado e plantar lavouras, já que a mineração decaíra consideravelmente. Os mineiros trouxeram consigo muitas habilidades, no trato da terra, na cuida das criações, na tecelagem artesanal, nas fabricações de queijo, de açúcar, de rapadura, de açúcar mascavo e de fumo em corda, nos trabalhos em couro e madeira, e na religião, folclore e crendices populares. A partir de 1808, vieram os portugueses de Açores. Raramente o mineiro do sul, de sobrenome português, não tem ascendência açoriana. Esses, por sua vez, descendem de habitantes de Algarves, Estremadura, Alentejo e Minho.
Muito próxima da fronteira com a Capitania de São Paulo, uma tropa conduzida por mineiros arrancha para mais uma noite.
— Não longe daqui, afirma o guia, passa o rio Pardo, no sertão do mesmo nome, e por onde seguem numerosas tropas no Caminho de Goiás.
O tenente Urias Emídio Nogueira de Barros, que se iniciava como sertanista, responde que muito lhe agradaria conhecer a região. Mais tarde voltaria, pois chegara o momento de retomar o caminho de casa. Os mantimentos escasseavam e o cansaço se fazia notar. Tomando rumo de Alfenas, segue a tropa pelo vale do Sapucaí, retornando a Baependi.
Em 1811, um ano após sua primeira desafiadora aventura pelo território sul mineiro, o tenente Urias, de 19 anos, parte, com tropa, para o Sertão do Rio Pardo, que ele muito desejava conhecer. Os habitantes dos lugarejos por onde passara em sua primeira excursão, em sua maioria desqualificados, e a falta de perspectiva futura desta região sul mineira, causaram-lhe profundo desinteresse em adquirir aí terras, com o que concordara seu pai, o capitão João de Sousa Nogueira. Deveria seguir adiante, para a Capitania de São Paulo, como muitos outros mineiros estavam fazendo. O vazio causado pelo extermínio dos quilombolas deste imenso território do sul de Minas só seria preenchido bem mais tarde, por imigrantes italianos, que ocupariam seus antigos povoados.
Seguindo pelo mesmo caminho da viagem anterior, Urias chega, pela segunda vez, ao arraial de Cabo Verde, de onde prossegue até a freguesia de Nossa Senhora da Conceição das Cabeceiras do Rio Pardo (Caconde, 1755), já em terras paulistas; nesse lugarejo, ouro brotara em 1765 e, depois, em 1781. Escasseando o metal, apenas fazendeiros permaneceram no lugar e muitos outros vieram assenhorear-se de novas terras, requerendo sesmarias, ou obtendo glebas por compra e posse. Em 1811, ano em que Urias por aí passava, numerosas posses e pedidos de sesmarias haviam sido concedidos. Prosseguindo na viagem, a tropa chega às barrancas do caudaloso rio Pardo, lugar deserto, coberto por espessa vegetação, que escondia sob si fertilíssimas terras. Nada havia aí senão algumas malocas indígenas, sendo Urias o primeiro dos Nogueira de Barros a pisar esse território. Pela primeira vez ele se entusisma com o que vê.
“Seria esta a terra prometida?”, conjetura ele.
Pouco mais tarde, em 1815, o sesmeiro português, capitão Alexandre Luís de Mello, vindo de Minas Gerais, colonizaria as terras entre os afluentes do rio Pardo: os rios Fartura e do Peixe. O clã dos Nogueira de Barros viria mais tarde se estabelecer nesse lugar, e uma freguesia surgiria cinco décadas depois, com o nome de São José do Rio Pardo (1865), fundada por um sobrinho do tenente Urias.
Para a travessia do grande rio, havia uma passagem que fora arrematada, em 1766, junto com as passagens dos rios Mogi Guaçu, Jaguari e Sapucaí, por 206$000.
─ Convém não parar por aqui ─ disse o guia a Urias ─, pois estas águas são muito pestilentas, transmitindo febres intermitentes, de época em época.
Urias olha para as águas marrons do grande rio e acha mesmo que elas não deveriam ser boas para beber.
─ Além disso ─ continua o guia ─ os índios dizem que em tempo de cheia do rio aparecem aqui bichos monstruosos, ora parecidos com porcos, ora com touros, que põem em debandada os mais corajosos...
Como o rio estava ainda cheio, pois era início de abril, o jovem tenente resolve partir. Pagando pedágio, por conta do fisco, da ordem de quatrocentos réis por pessoa, sessenta réis por mula e vinte réis pela carga de cada animal, Urias ouve o guia reclamar do elevado custo para a travessia do rio, com o que acaba concordando.
Cruzando em canoa, com muita dificuldade, o caudaloso rio Pardo, seguem os viajantes rumo ao Caminho de Goiás. Na altura do pouso da Casa Branca (Casa Branca, 1727;1814), encontram-se com carreteiro que conduzia um carro de boi carregado de toucinho e de algodão. Vestia, como a maior parte dos habitantes pobres destas plagas, simples calção e camisa grosseira de algodão; com a mesma simplicidade se trajavam as mulheres, com modestas saia e blusa. Perguntado sobre si, responde que vinha do arraial de Franca (Franca, 1805), e estava indo a São Paulo vender suas mercadorias e trazer de lá sal (proveniente de Santos) e ferro (proveniente da forja de Ipanema). Fazia isso uma vez por ano, pois a viagem de ida e volta demorava mais de mês. Na choupana que tinha à beira da estrada, vendia milho para os tropeiros. Informado que o tenente Urias era mineiro, logo se abre em conversa animada.
— No arraiá di Franca — diz ele — só tem mineiro, qui dexô suas terra pur achá qui as que tinha era poca, u entonces purque fugia da justiça u di seus credô. Incontraru terras dispovoada, solo bão, e pastage da mió qualidade, e delas tomô conta. É lugarejo pirigoso, que conseio a mecês num pará pur muito tempo. Tem criminoso a dá cum pau pur aquelas banda...
Como era em sentido oposto àquele arraial que os viajantes se dirigiam, a recomendação do carreteiro foi de pouca valia.
Desde Franca, as montanhas dão lugar a imensa chapada, com altitudes moderadas (entre 800 e 1000 m), com campos mais abertos, quase sem as árvores mirradas dos campos acima desse lugarejo, o que permite descortinar vasto horizonte. A largueza das terras do pouso da Casa Branca e a vastidão dos campos cobertos de verdejantes capim-flexa e barba-de-bode, paisagem essa jamais vista por Urias, causam-lhe impressão favorável.
A terra poder não ser tão boa para lavoura — comenta o tenente com o seu guia —, porém estes campos abertos podem acomodar grandes rebanhos sem que se tenha de derrubar mato. Além disso, há muita mata à beira dos ribeiros, que devem dar excelente água e ser terra muito produtiva. Aqui, sim, poderemos nos estabelecer e criar nosso gado.
Seguindo pelo Caminho de Goiás em direção a Mogi Mirim, os viajantes encontram muitos paulistas estabelecidos à beira da estrada, quase todos mamelucos (caboclos), ignorantes, apáticos e grosseiros, vestidos rudemente e sempre muito sujos, assim como suas parcas moradias. Encontram, também, muitos mineiros, vindos da comarca de São João Del Rei. Esses eram brancos em sua maioria, e, conforme observara Saint Hilaire: “a limpeza reina em suas casas; eles são mais ativos, bem mais inteligentes, menos descorteses e mais hospitaleiros que os legítimos paulistas dessa região. Numa palavra, eles conservam todos os hábitos e costues de sua terra.”
Urias já havia sido alertado pelo seu pai sobre os modos dos paulistas, que herdaram a rudeza de seus antepassados, não recebendo nenhuma educação religiosa, fazendo justiça pelas próprias mãos. “Chumbo na cabeça, faca no coração”, era o que mais se ouvia neste sertão sem lei. A vinda de muitos criminosos mineiros para o nordeste de São Paulo também contribuira para acirrar seus ânimos.
Deixando o pouso da Casa Branca, a tropa avança por região ondulada, de capões e campos, marchando por cinco leguas e meia (22 km) até as margens do rio Jaguari Mirim, afluente do rio Pardo, que corta a estrada. Havia aí mais uma passagem, que pertencera, como todas as outras, ao filho do “Anhanguera”, descobridor das minas de Goiás, mas que desde 1778 era administrada por um sargento-mor, em conjunto com a Fazenda Real. A partir desse ponto, a tropa encontra maior número de casas e a primeira venda, indicativos da proximidade de povoamentos maiores e do fim dos sertões.
À margem esquerda de outro grande rio ─ o Mogi Guaçu ─, que em tupi significa “grande rio das cobras”, onde havia nova passagem, desponta o pequeno e antigo arraial de mesmo nome, antes conhecido por freguesia de Conceição do Campo (Mogi Guaçu, 1728), com sua igreja e suas poucas casas. A passagem pelo rio se faz por ponte de madeira, mal conservada, estreita e sem parapeito, verdadeiro perigo para as mulas de carga. O rio fornecia excelentes peixes; porém, assim como o Pardo, com o qual se junta, tinha fama de ser causador de febres, devido seus inúmeros lamaçais. Contava-se no arraial que uma epidemia havia matado muita gente tempos atrás, quando centenas de peixes apodreceram no rio, mortos por timbó usado por pescadores. O ar se tornara pestilento, causando terrível doença.
A poucas léguas desse arraial surge a primeira vila paulista que o tenente Urias vem a conhecer: a vila de São José de Mogi Mirim (Mogi Mirim, 1719). Um dos primeiros moradores do antigo arraial tinha sido Sebastião Leme do Prado, parente da sua bisavó Maria Leme do Prado. Criada em 1769, a vila abrangia enorme território municipal, tendo por limites os rios Atibaia e Grande, este na divisa entre São Paulo e Minas Gerais. Com o passar do tempo, foram se formando arraiais e povoados no extenso município de Mogi Mirim, dentre os quais Franca, Batatais, Casa Branca e Mogi Guaçu. As casas, em geral pequenas, baixas e de pau a pique, feitas de barro cinzento, e as muitas vendas mal providas, davam à vila aspecto tristonho. Seus moradores eram agricultores, e para ela só vinham aos domingos. Acostumado aos padrões mineiros, Urias comenta: “Se fosse em Minas, esta vila não seria mais do que sede de paróquia.”
Nas fazendas criavam-se muitos porcos e havia vários engenhos de açúcar e destilarias de aguardente. Os grandes fazendeiros vendiam o açúcar para negociantes paulistas, que vinham adquiri-lo diretamente nas fazendas, pagando à vista, embarcando-o no porto de Santos, com destino ao Rio de Janeiro. A cana se plantava e colhia por dois anos, sendo depois replantada. Após cinco anos de cultivo, a terra era deixada descansar por três anos, quando crescia capoeira, logo cortada e queimada, fazendo-se novo plantio, aproveitando-se as cinzas como adubo.
Em Mogi Mirim, o tenente Urias toma os primeiros conhecimentos acerca do tropeirismo paulista. Assim como Campinas e Jundiaí, situadas na mesma Estrada de Goiás, Mogi Mirim fornecia boa parte dos “camaradas” que acompanham as tropas de burros, que partem da capital em direção a Goiás e Mato Grosso.
“Um tocador de tropa”, disse a Urias o dono do rancho grande onde o tenente havia se hospedado, “recebe de vinte a trinta mil réis para ir de São Paulo à Vila Boa, uma viagem de quatro meses. O chefe da tropa fornece a alimentação de todas as montarias dos seus camaradas, mas apenas para a ida. O arreador recebe pelo número de mulas que cuida e guia. Antes da partida, o chefe dá os adiantamentos necessários para a compra de burros e mercadorias, e, à chegada, essa quantia é descontada do dinheiro que o camarada tem a receber.”
A estada em Mogi foi curta. Deixando a vila, a tropa caminha por vasta campina, que aos poucos é substituída por densa floresta, à medida que se aproxima da Borda do Campo. Às margens do rio Jaguari Guaçu (rio Jaguari, na altura de Jaguariúna) havia nova passagem, com pedágio cobrado mais uma vez, cruzando-se o rio por ponte estreita, sem proteção lateral e fechada por porteira, que só se abre para quem paga o tributo. Essa passagem fora arrematada em 1795, ficando os seus arrematantes com o direito de “tapar os caminhos do rio Pardo para Jacuí e da Ressaca para Atibaia, a fim de evitar que haja pouca afluência de pessoas na Passagem do Rio Jaguari-Guaçu.” Um novo rio logo é avistado em meio à mata ─ o rio Atibaia ─, que, com o Jaguari, forma o rio Piracicaba, afluente do Tietê. Novo pedágio e nova reclamação do guia. Urias acaba se convencendo que se tivesse de adquirir alguma terra ela teria de estar não tão longe da vila de São Carlos (Campinas), pois desse local para frente, até o porto de Santos, não havia mais cobranças.
A medida que caminham, os viajantes vão contando dezenas de grandes engenhos de açúcar. A estrada torna-se mais movimentada com o vai e vem dos tropeiros e de mulas carregadas de açúcar. Os ranchos são agora maiores, de paredes de taipa e cobertura de telhas ─ os reais, como são chamados ─ erguidos e mantidos pelo fisco. O sertão ficara mais distante. Aproxima-se a vila de São Carlos (Campinas), totalmente rodeada de matas, com as casas de barro cobertas de telhas, onde agricultores haviam obtido grande sucesso ao plantarem cana em terra de cor vermelho escuro, ao invés de terra preta, como se fazia em Itu.
Alojado em uma fazenda, onde o guia havia pedido pouso, e de que era proprietário certo capitão-mor, o tenente Urias conhece a sede, uma bonita casa, cujas paredes, dos quartos e das salas de visita e de jantar, eram pintadas a óleo até meia altura, depois caiadas até o teto, sendo ornadas com guirlandas de flores.
“O termo de São Carlos”, disse-lhe o capitão, “é hoje o maior produtor de açúcar e aguardente da Capitania de São Paulo; conta com quase seis mil almas, das quais quase a metade é de escravos negros e mulatos. Com vinte escravos um fazendeiro pode produzir 2.000 @ (30 t) de açúcar. Para o transporte até Santos, paga-se a um tropeiro a quantia de trezentos e quarenta a quatrocentos réis por arroba, em viagem de doze dias.”
A conversa foi muito instrutiva para o jovem tenente, que anota, em seu caderno de viagem, muito do que ouvira do experiente capitão, para depois poder transmitir aos seus familiares.
Na fazenda, chama a atenção de Urias uns jacás achatados, quase quadrados, colocados nos flancos de cada besta de carga, servindo para o transporte de sacos de açúcar, de modo a que cada animal levasse oito arrobas, quatro de cada lado. Urias achou-os muito parecidos com os cestos que, em Minas, eram usados para transportar queijos. Por outro lado, desagradam-lhe as maneiras pouco corteses dos paulistas das classes mais baixas, que viviam à margem da estrada. Na expressão do viajante francês Saint Hilaire, tratava-se, geralmente, de gente pouco instruída, “... de expressão fria, estúpida, triste e apática”, muito diferente dos mineiros de sua região.
Da vila de São Carlos (Campinas), em direção à vila de Nossa Senhora do Desterro de Jundiaí (Jundiaí, 1665), o terreno começa a se tornar montanhoso, logo surgindo nova serra (serra do Japi), próxima à vila. Matas densas cobrem toda a estrada. As mulas da tropa começam a emagrecer, pois não mais existem os campos com capins verdejantes e nutritivos; apenas cresce capim nas áreas onde as árvores foram derrubadas.
A vila de Jundiaí pouco difere da vila de São Carlos. Seus moradores também são agricultores, que só vêm à vila aos domingos e feriados; durante a semana, as casas permanecem fechadas. Chama a atenção dos viajantes o número de pessoas com bócio, os chamados papudos de Jundiaí. Para curar a doença, recomendava-se tomar água à qual se acrescentava um pouco de terra de cupim, ao mesmo tempo em que se aplicavam cataplasmas dessa mesma terra sobre o papo.
O número de camaradas fornecidos às tropas superava o de Mogi Mirim, sendo, pelo que se pode apurar, melhores do que todos os demais. A maior parte das tropas de burros que partia de São Paulo para Goiás e Mato Grosso era organizada nas terras de um capitão-mor de Jundiaí, que comprava milhares de muares na vizinha vila de Sorocaba, revendendo-os, em lotes, aos chefes de tropas, arranjando-lhes, também, provisões e camaradas. A riqueza em terras deste fazendeiro impressiona muito ao tenente Urias, que passa a colocar mais fé no tropeirismo, acreditando mesmo que poderia fazer dele o seu ganha pão.
Continua.
Referência.
Paschoal, A.D. História de uma família. Genealogia à luz da história. Tomo I. Séculos VIII a XIX. 430 p. Piracicaba, 2007.
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