Adilson D. Paschoal
Professor Sênior da Esalq-USP
Século XIX. Obtenção de terras de sesmaria na Capitania de São Paulo. De cavalo à Corte de D. João VI. O assentamento real de açorianos traz muitos sesmeiros para Casa Branca. Fazenda da Cachoeira. Freguesia dos Batatais. A lendária Zabelona.
A obtenção de terras de sesmaria na Capitania de São Paulo, desde o século XIX, com os incentivos de Morgado Mateus, exigia muitos sacrifícios. Primeiro, tinha-se que ter capital avultado e vários escravos, pois não os tendo e não se conseguindo ocupá-las, fazendo-as produzir dentro do prazo estipulado, acabavam retornadas ao governo. Nesse sentido, os mineiros do sul da Capitania das Gerais estavam em vantagem, enriquecidos que se achavam pela mineração, depois da qual se converteram em abastados agricultores. Adentrar o sertão, inóspito e bravio, a procura de terras devolutas próprias para agricultura ou para criação animal era o segundo e mais difícil desafio. Depois, eram as questões burocráticas e técnicas, para obter a posse das terras, a ida até elas, enfrentado, de novo, as agruras do sertão pouco conhecido, a demarcação, o desmoitado, a ereção de casas, ranchos, engenho, senzala e tudo o mais necessário à prática da agricultura e da criação animal.
Ano de 1810. Residência dos Nogueiras na vila de Baependi. Na ampla sala do solário, um jovem tenente de 18 anos ouve, atentamente, o relato de um amigo de seu pai, sertanista de larga experiência, e que fora convidado pelo capitão João de Sousa Nogueira para expor os conhecimentos que tinha do sertão para onde o tenente tão ardentemente desejava se aventurar.
— É sertão bravio — conta ele — de muitas montanhas cobertas por matas fechadas, morada de feras e selvagens caiapós. Muitos ribeiros faiscaram ouro, que era pouco, levando os aventureiros a pedirem terras de sesmaria à beira das trilhas, por onde estavam passando tropas paulistas e mineiras.
Quando perguntado que trajeto fizera, respondeu com tal brilho nos olhos, que chegou a impressioar vivamente o jovem tenente. A conversa atravessa a tarde, pela riqueza de detalhes esclarecedores. Por fim, num ímpeto juvenil, exclama o tenente:
— Pois então está decidido! — Se com isso concordar o capitão meu pai, será por esse caminho que chegarei ao sertão do Jacuí, na fronteira com São Paulo.
— O tenente só terá de tomar muito cuidado — finaliza o sertanista — pois nestes sertões ainda há muitos quilombos, de negros fugitivos e brancos assassinos.
Assim teve inicio a brilhante carreira, de sertanista, tropeiro e agricultor, do tenente Urias Emílio Nogueira de Barros. Depois de ele ter percorrido a imensidão dos sertões brasileiros, notadamente os do Sul da Colônia, pela Estrada de Viamão, ou Estrada das Tropas, que ia de Sorocaba a Viamão, na Capitania do Rio Grande de São Pedro (Rio Grande do Sul), e de ter passado sucessivas vezes pelo Sertão do Rio Pardo, onde se encantara pela beleza das matas e pela vastidão dos campos, aconselha seus pais a deixarem Baependi, nas Gerais, e a se mudarem para a região. Como eles, muitos mineiros estavam vindo para o noroeste paulista, principalmente para criarem gado.
Em 17 de fevereiro de 1815, o tenente Urias e seu pai vão a cavalo à Corte, no Rio de Janeiro, uma viagem de mais de 80 léguas, que levava meses de viagem, onde obtêm passaportes, com validades de três meses, concedidos em nome do príncipe regente pelo intendente geral da polícia da Corte. Pela sua fidalguia e muitas posses, são recebidos pelo futuro monarca D. João VI, de quem ficam sabendo de seu propósito, posto em prática mui recentemente, de assentar agricultores açorianos na freguesia da Casa Branca, à custa do erário Real. Por tal motivo — asseverara-lhes o futuro rei — deverá trazer grande desenvolvimento para aquele sertão.
Pelo interesse demonstrado, o capitão e seu filho obtêm sesmarias em terras devolutas pertencentes à freguesia da Casa Branca, para além do ribeiro Palmeiras, e ao arraial dos Batatais (futuramente, esta região se converteria no principal polo produtor de café, surgindo Ribeirão Preto em 1856).
A passagem pela freguesia da Casa Branca foi rápida. No ano de 1815, construía-se aí a capela de Nossa Senhora das Dores e concluíam-se as vinte e quatro casas para abrigar os ilhéus dos Açores. Descendo pela estrada que cortava a freguesia, havia várias casas esparsas. Em uma delas, bastante ampla, coberta de sapé, a família Nogueira fica alojada para o pernoite. Dias depois, recuperados da longa viagem que haviam feito, o capitão João ordena a partida, a fim de tomar posse de suas terras de sesmaria adiante do ribeiro Palmeiras e na freguesia dos Batatais.
Tendo-se abastecido de mercadorias nas vendas próximas, e estando os animais prontos para nova jornada, os Nogueiras e seus escravos e agregados atravessam ponte de pau sobre o ribeiro Palmeiras (Espraiado), vadeiam quatro outros ribeirões até o sítio chamado Estiva, onde existiam três casas pobres, pertencentes à família de Lara — José, Vicente e Francisco —, que costumavam negociar com os tropeiros e carreiros que por aí passavam. Algumas mulas são trocadas por outras mais descansadas, e alguns víveres são adquiridos. Continuando a marcha, percorrendo terreno de linda e pitoresca vista, os viajantes atravessam um capão, passam por estreita ponte de madeira sobre o ribeiro Tambaú, cheio de pequenas conchas, e atingem a fazenda da Paciência, onde, por ordem do capitão, o chefe dos arrieiros pede pouso. Ao saber tratar-se de família nobre de Baependi, o português Joaquim Machado, dono da fazenda, vai pessoalmente receber os hóspedes.
A visita à bem sucedida fazenda da Paciência e uma conversa franca com seu proprietário, fazendeiro arrojado, que tivera papel preponderante na ereção da freguesia em Casa Branca, foram decisivas para que o capitão João de Sousa Nogueira e seu filho Urias tomassem a decisão de se fixarem em Casa Branca. As terras, ainda de poucos donos, a posição estratégica da freguesia na Estrada de Goiás, onde se entroncava com muitos caminhos para Minas Gerais, e o interesse do príncipe regente em nela fixar núcleos de colonização portuguesa, prometiam grande futuro a todos.
Próximo da Paciência ficava uma das sesmarias de que toma posse o capitão, transformando-a em produtiva fazenda, a que chama fazenda da Cachoeira. Em Casa Branca, no ano 1816, o capitão João Nogueira informa, no recenceamento, que tinha cinquenta e oito anos de idade, era natural de Minas, e residia na vila com sua esposa Maria Teodora de Barros, de quarenta e um anos, também natural de Minas Gerais, e os filhos solteiros Antônio, João, José, Hipólita, Bernardina e Ignácia. Nesse mesmo ano, afirma que “colheo 10 carros de milho (7.200 kg), 22 alqueires de feijão (670 Kg) e 9 arrobas de algudão (145 kg). Entrou 5 alqueires de sal por 15$000. Consumio tudo em caza.” Tinha quinze escravos, sendo dez adultos (dez homens e cinco mulheres), dos quais três eram angolas (trazidos da África) e doze criolos (nascidos no Brasil), com idades entre dois e quarenta e nove anos.
Mas havia mais terras para tomar posse, e estas ficavam próximas à freguesia dos Batatais, cerca de 16 léguas (64 km) da Paciência e outras tantas da Cachoeira. Enquanto parte da família permanecia nas terras da Casa Branca, comandando a implantação da fazenda, o capitão João, seu filho Urias e a tropa seguem para Batatais. Após marchar adiante quatro léguas e um quarto (17 km),chegam ao rio Pardo, onde existe porto com cobrança de pedágio. Tendo o rio largura de cento e cinquenta braças, a travessia das pessoas e cargas é feita em canoas; somente as bestas atravessam à nado. O capitão paga quatrocentos réis por pessoa, vinte réis por carga e sessenta réis por animal de carga.
Partindo desse lugar, o caminho torna-se descoberto, com alguns poucos moradores isolados. Entrando na serra do Cubatão, de fácil acesso, atravessa-se rio de mesmo nome, por ponte de pau, chegando-se ao pouso do Cubatão, distante três léguas (12 km) do rio Pardo, contando-se até aí cinco ribeiros. O pouso do Cubatão assentado em plano mais alto, permite que se descortinem, para o lado da serra, os cumes de diversos bosques.
— Terminam aqui as terras da freguesia da Casa Branca — diz Urias ao capitão seu pai.
— E também aqui começam as de Batatais — responde-lhe o capitão —, onde ficam terras que iremos legitimar a posse. — Pelo que soube, aqui logo nascerá nova freguesia.
— Para nossa felicidade, meu pai — comenta Urias —, ela já foi criada, segundo me disse o gentil-homem dono da Paciência.
Do pouso do Cubatão em diante o terreno apresenta diversos capões e capoeiras; o caminho é bom, plano por largos espaços. Densa floresta cobre profundo vale, avistando-se ao longe a serra das Caldas. Após três léguas (12 km), chega-se à fazenda das Lages, onde há grande negócio com gado. Das Lages, parte-se rumo ao norte, descendo-se a um vale cortado por ribeiro, além do qual está a serra do Morro; o caminho é por aqui ruim, e há ladeira íngreme, com muita pedra solta, sendo infestado de mutucas e mosquitos. Nas proximidades passa o rio Araraquara, afluente do Pardo. A estrada segue plana e agradável. Subindo a serra do Mato Grosso, coberta por altas e grossas árvores, e passado o ribeiro da Bela Vista, a poucos passos se apresenta aos olhos um quadro encantador: extensos campos, semeados de gado, diversos capões e capoeiras, cristalinos ribeiros e algumas colinas ao longe. Depois de marchar oito léguas e meia (34 km), desde o pouso do Cubatão, os viajantes chegam finalmente à freguesia dos Batatais (Batatais, 1801).
— Será qui vamu incontrá muita batata pur aqui, capitão? — indaga, com ironia, um tocador de burros, que vinha com a tropa.
— É o que parece dizer a palavra — responde-lhe o capitão João —. Mas ouvi dizer que o nome foi dado pelos bugres que aqui viviam, por motivo de existir muita cobra de fogo por estas bandas, “mboitata” na língua deles, que os índios acreditavam ser um gênio que protegia os campos contra os incêndios...
— Uai! Si é ansim — comenta o mateiro, provocando risos — será bão que mecê deite arguma delas nos seus campu, qui é pru gado ingordá mais mió.
Por esta época, havia quinze posses de sesmarias na região, que foram se dividindo dando origem a fazendas. Em 1801, Batatais era apenas um povoado de meia dúzia de casas humildes. Nove anos depois, tinha pequeno cemitério e passava à condição de arraial. Em 1814, já existiam capelas e povoados na região, suficientes para que fosse erigido em freguesia, com o nome de Senhor Bom Jesus da Cana Verde de Batatais (1815).
Nos anos 1817, 1818 e 1820, o capitão João de Sousa Nogueira é de novo recenceado nesta freguesia de Batatais, como parte da população de Mogi Mirim. A fazenda de que era proprietário, assim como todas as demais de posse de mineiros, tinha a mesma estrutra das fazendas do sul de Minas; conservavam-se, dessa maneira, os bons hábitos havidos de seus ancestrais. Mal clareava o dia, o pátio da fazenda, sempre muito amplo e cercado por grossos mourões, logo se enchia de vacas. Os filhos do dono começavam a ordenhá-las, misturando-se com negras escravas.
Em 1817, no recenseamento de Batatais, lia-se o seguinte: “Cresseu nesta familia comparada com a do anno antecedente a escrava Joaquina. Colheu 30 carros de milho e 20 alq. de feijão, 16 de arroz e 6 de mamona. Entrou 8 alqq de sal por 24$000. Tudo consumiu em sua caza. Marcou 12 bezerros. Demenuhiu mais hú filho, se auzentou para as Geraes.” Em 1818, também em Batatais, o capitão vivia de engenho e de criar. Colheu quarenta carros de milho e vendeu quatro carros por 10$000, seis bois por 46$000, dez capados por 20$000 e cem queijos por 6$000. Total 82$000.
Cerca de nove léguas (36 km) de Batatais ficava o arraial de Franca, de muitos mineiros malfeitores, foragidos da justiça, o que passa a inquietar muito o capitão João e seus filhos. Possivelmente tenha sido esse um outro fator a determinar sua ida definitiva para Casa Branca, possivelmente em 1820. Na Vila Franca do Imperador, como passara a ser denominado o arraial de Franca, houve uma revolta em 1838, em que muitas atrocidades foram cometidas, levando várias pessoas de bem a fugir do local, o crime saindo vitorioso. Maus elementos também tinham se fixado em Batatais.
No ano 1820, um antes do retorno de D. João VI a Portugal, o capitão João recebe uma sesmaria chamada da Zabelona, no Sertão da Casa Branca. Quem dela toma posse, em seu nome, é o tenente Urias. Era uma imensidão de terra, compreendendo territórios de São Bento de Cajuru (Cajuru,1821) — onde hoje está a fazendas da Serra —, e de São Sebastião da Boa Vista (Mococa,1814) — onde hoje estão as fazendas Boiada, Limeira, Alegria, Três Barras e Borda da Mata. Praticamente todo o município atual de Mococa estava dentro da quase lendária Zabelona.
Com a morte do capitão João em 1827, aos 70 anos de idade, a sesmaria passa a seu segundo filho, Antônio Jacinto Nogueira, irmão do tenente Urias. Mais tarde, em 1833, a Zabelona é vendida ao famigerado Dom Thomaz de Molina, rico espanhol que para aí leva o fausto das cortes europeias. “Este Dom Thomaz estabelece, na referida sesmaria, entre ínvias serras, em esconderijo natural, com única entrada pela margem do Rio Pardo, uma fábrica de moedas de cobre, chegando a produzir muitas moedas de dez, vinte, quarenta e oitenta réis (as moedas de cobre, em 1840, perderam metade do valor, sendo recarimbadas, pelo que desapareceram as de oitenta réis). Dom Thomaz, sendo perseguido pelas justiças de El-Rei, por denúncia contra ele dada, desaparece de sua fazenda, desamparando a fábrica em franca prosperidade, sem que nem seus próprios fâmulos, que eram sua única família, soubessem que rumo seguira.”
Como as terras da Zabelona foram vendidas pelo segundo filho do capitão João, é de se supor que ele detinha a posse das terras que pertenceram a seu pai; nesse sentido, Urias não herdou a fazenda, assim como seus descendentes. Em 1833, Thomaz de Molina vende para o capitão Diogo Garcia da Cruz, então morador na vila de Lavras do Funil (Lavras), pela quantia de 12:462$000, “campos de criar e matas de cultura, denominados da Alegria, grande área delimitada pelos cursos dos Rios Areias, Canoas, Pardo e Boiada, pertencente à Zabelona.” Nesse mesmo ano, terras da Zabelona passam a José Gomes Lima, por título de compra feita também a Thomaz de Molina. Em 1856, por força da Lei da Terra, de 1850, a fazenda foi declarada de posse por José Gomes Lima, ao vigário de Casa Branca.
O tenente Urias foi senhor de uma sesmaria chamada Bocaina, em São Simão (São Simão, 1824), que pertencia a Casa Branca, assim como das seguintes outras no mesmo sertão: Cachoeira, Jardim e Rio Verde (hoje Itaby).
Continua.
Referências.
Paschoal, A.D. História de uma família. Genealogia à luz da história. Tomo I. Séculos VIII a XIX. 430 p. Piracicaba, 2007.
Stempniewski, R. Os Nogueiras, uma família de pioneiros. A Tribuna Regional. Cravinhos, 18.3.2014.
Caro Adilson,
ResponderExcluirSou um leitor assíduo de textos e livros históricos. Estou tentando (enquanto o cérebro permitir) continuar a assim ser e parabenizo-o pelos "Aspectos Históricos da Agricultura Paulista".
Abraços
Angelocci
Prezado Angelocci.
ExcluirObrigado pelos comentários. O exercício mental cria novos neurônios.
A.Paschoal