Adilson D. Paschoal
Professor Titular-Sênior da Esalq-USP
Heterogeneidade do sistema familiar
Como já mencionado no artigo anterior, a agricultura familiar tem sua importância relacionada com vários fatores: absorção de emprego reduzindo o êxodo rural; produção diversificada de alimentos in natura e industrializados e de matérias-primas para consumo próprio e para venda, provendo a população com a maior parte dos alimentos que consome; alimentos de melhor qualidade biológica, com menos resíduos de insumos químicos artificiais; conservação e preservação maior dos recursos produtivos e naturais, sendo sustentáveis e mantenedoras da biodiversidade; e fonte de renda para as unidades familiares, gerando riqueza para o país. Basta recordar que 77% dos estabelecimentos agrícolas do país pertencem à agricultura familiar; que ocupa 80,9 milhões de hectares, empregando mais de 10 milhões de pessoas e que é responsável por 23% do valor total da produção do setor agropecuário, i.e., R$107 bilhões em 2017.
Não há uniformidade na produção familiar brasileira, cada estado e grande região geográfica tendo características próprias, sendo isso natural num país continental como o Brasil. A heterogeneidade do sistema familiar tem origem nos processos históricos de ocupação e de exploração territorial que, aliados às questões culturais, socioeconômicas, climáticas e edáficas, moldaram o perfil do produtor familiar, a sua forma de produzir e o que produz. Modernamente, vemos o seu evolver no sentido de participação no agronegócio exportador de aves, suínos, café, frutas tropicais e soja.
Brevemente, apresento as características de cada região, das mais antigas às mais recentes.
Agricultura familiar no Nordeste
Em termos gerais, do país como um todo, o valor bruto de produção mensal por propriedade familiar é de menos da metade de um salário mínimo (0,46), o que explica a situação de extrema pobreza de muitos produtores familiares, máxime no Nordeste, onde 72% deles estão nessa categoria.
Dados recentes do IBGE mostram estar ocorrendo êxito rural nessa região sendo que, de 2012 a 2017, o Nordeste perdeu mais de um milhão de trabalhadores rurais (de 22,4% para 16,2% no período), principalmente de pequenos agricultores, em parte devido à diminuição de financiamentos pelo Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) e por fatores climáticos (Grande Seca). O número de pessoas associadas às cooperativas de trabalho ou produção também caiu, passando de 6,4% em 2012, para 5,8% em 2017. Em termos comparativos, em 2017 o Brasil tinha 11,1% da população em áreas rurais (15 milhões), assim distribuída: Norte, 18,7%; Nordeste, 16,2%; Centro-Oeste, 12,4%; Sul, 12,4% e Sudeste 6,5%. O país apresentou queda de 274 mil pessoas entre 2016 e 2017, sendo que no Nordeste a queda foi de 386 mil. Por outro lado, houve crescimento de 133 mil pessoas no Sudeste.
Apesar de a Grande Seca que assolou a região de 2012 a 2017, e da diminuição na quantidade de estabelecimentos, a agricultura familiar predomina em todos os estados nordestinos, ocupando 74% da população envolvida em atividades agropecuárias, tendo contingente de 4,7 milhões de pessoas. Do pessoal ocupado com agropecuária familiar o Nordeste aparece em primeiro (46.6%), seguido pelo Sudeste (16,5%).
Estudo recente sobre a agricultura familiar nordestina, publicado pela Rev. Econ., NE (2020), pode-se concluir o que segue. A maioria dos agricultores familiares tem idade avançada, não é alfabetizada e não recebe assistência técnica e extensão rural. Práticas conservacionistas são raramente aplicadas e é precário o acesso à terra, à água, aos bens de capital e às tecnologias mecânicas. Minifúndios pouco produtivos predominam, inviabilizados pela seca. Os agricultores familiares destacam-se na produção de alimentos básicos sendo raras as lavouras que geram alimentos de maior valor agregado como cana-de-açúcar, soja e frutas irrigadas. Malgrado isso, a agricultura familiar foi responsável por cerca de 30% de toda a riqueza gerada no campo em 2017, o que equivale a R$ 15,8 bilhões. Porém, essa produção acha-se concentrada em pequeno grupo de agricultores (cerca de 11% do total), que produz 62% da riqueza da agricultura familiar nordestina.
Santana do Ipanema, sertão de Alagoas. Em meio à seca de 2012, um dos poucos sertanejos que ficaram em suas terras ressequidas, apesar da “seca que racha o chão”, comenta com seu igualmente sofrido vizinho, no linguajar típico regional, trocando e por i, o por u, l por r:
— Zé! Vendeste tudo o gadu?
— Quais tudo! Das 64 cabeça que tinha ficaro 12.
— Fizeste bão negócio?
— Oxente! Troquei quais tudo pur água du caminhão pipa, num sabe? Na cheia as vaca vale 1.500 conto cada; agora se a gente acha compradô, ai aparece u rafamé pra emperriá e pagá a miséria de 300. Agora pronto! A muié mais eu tá pensando em abandoná tudo i ir simbora. O leite das vaca é poco... num dá pras criança; a parma que prantei num deu pru gasto... Da mantega só fico duas garrafa... Sobrô um poco de fejão-de-corda, macaxera e jerimum... Num dá mais pra ficá...To meio ariado...
— Não se apoquente tanto, cumpadi. A chuva não tardeia e ocê vai podê comprá
otra bizerrada...
Mas a chuva não veio, e a família teve de ir para a cidade.
A receita dos agricultores familiares provém da venda de produtos agropecuários, do trabalho não agrícola e do recebimento de benefícios da Previdência Social e do Pronaf. Em 2017, o setor familiar movimentou R$ 32 bilhões, garantia de permanência no campo. A Embrapa Semiárido, de Petrolina, PE, tem desenvolvido tecnologias mais adequadas para a região, como variedades resistentes à seca; sistemas agroflorestais, com o umbuzeiro (Spondias tuberosa) como fonte de renda; fixadores nativos biológicos de nitrogênio; cultivos integrados; captação de água das chuvas in situ; cisternas; barragens subterrâneas; irrigação; dessalinização de água; forrageiras etc.
Agricultura familiar na região Sudeste
O predomínio histórico dessa região, desde o tempo colonial, foi a produção de bens agrícolas para exportação (açúcar, café, algodão, laranja), explorados em extensas propriedades agropecuárias. Marginalizado, desamparado e desacreditado por centenas de anos, o pequeno agricultor (atual agricultor familiar) teve mui recentemente seu valor reconhecido como responsável pelo abastecimento de grande parte dos alimentos da mesa de paulistas, mineiros, fluminenses e capixabas, deixando assim de ser “Jeca Tatu”, “Joaquim Bentinho” e “Caipira”.
Das regiões brasileiras, o Sudeste tem a maior participação na produção agropecuária com as culturas de cana-de-açúcar, café arábica, leite de vaca e laranja. Essa participação vem caindo nas últimas décadas devido à expansão agrícola ocorrida principalmente no Centro-Oeste.
O Censo Agropecuário de 2006 mostra que dos 892.049 estabelecimentos agropecuários do Sudeste 699.978 são de agricultura familiar (75%), a maioria localizada em Minas Gerais, com 437.415 propriedades das 551.617 existentes (79%); São Paulo vem em segundo, com 151.015 propriedades das 84.356 existentes (76%) e pelo Rio de Janeiro, com 44.145 propriedades das 58.480 existentes (75%). Relativa à área territorial dos estabelecimentos agropecuários do Sudeste (54.236.169 km²) 23% são ocupadas por agricultores familiares (12.789.019 km²), o índice percentual variando de 15% para São Paulo a 34% para o Espírito Santo. Comparando-se o número de pessoas ocupadas com a agricultura familiar com aquele da agricultura não familiar, verifica-se ser ele pouco maior para a agricultura familiar (1.799.346) do que para a não familiar (1.483.614). Do pessoal empregado em estabelecimentos agrícolas não familiares no Brasil perto de 55% trabalham na região Sudeste, principalmente em São Paulo e Minas Gerais, isso devido às culturas permanentes de café e de laranja, demandantes de muita mão de obra.
Em 2017, a região Sudeste tinha 688.945 propriedades familiares (17,68%) valor semelhante ao da região Sul (665.767, ou 17,08%). Relativa à área, os estabelecimentos familiares do Sudeste ocuparam 13.735.871 hectares (16,98%) maior, portanto, daquela da região Sul (11.492.520 hectares, ou 14,21%).
Nota: No próximo artigo, descreverei a agricultura familiar da região Sul, a mais desenvolvida do país, e das regiões Norte e Centro-Oeste.
Referência:
PASCHOAL, A.D. História Ilustrada da Agricultura. Seis séculos de agricultura no Brasil.
Edição comemorativa dos 120 anos da Esalq e dos 200 anos da Independência do Brasil. 550 p. aprox. Em revisão, para publicação.
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