Autor: Adilson Dias Paschoal | Professor Titular Sênior da USP/ESALQ | E-mail: adpascho@usp.br
Bipedalismo (postura bípede), maior mobilidade e interações sociais mais apuradas tiveram influência na perda dos pelos no homem primitivo, o que vai ocorrendo ao longo de milhões de anos. Nosso ancestral mais antigo conhecido (várias espécies de Australopithecus, notadamente A. garhi), que viveu na África há cerca de 4,2 milhões de anos, era bípede, media não mais do que 1,2 m de altura, os machos podendo ser até cinquenta por cento maiores do que as fêmeas, e com a característica de ter o corpo completamente coberto por pelos densos. Por sua vez, o Homo habilis, que lhe seguiu no processo evolutivo, há 2,2 milhões de anos, tinha menos pelos no corpo. Tal espécie coexistiu, por milênios, com outros primatas bípedes, do gênero Parantropus, extintos na competição com ele (Ver figura) por não terem, como vegetarianos que eram, desenvolvido a capacidade de produzir ferramentas de pedra lascada, ossos e paus, para caçar e se defender de predadores e de grupos rivais. Embora tal habilidade tivesse sido atribuída ao H. habilis, objetos primitivos de pedra lascada foram encontrados junto de Australopithecus garhi, 2,6 milhões de anos atrás. Assim como H. habilis, o Homo erectus, surgido igualmente na África por volta de 1,8 milhão de anos, também tinha menos pelos no corpo, media de 1,3 m a 1,7 m de altura, pesava 70 kg, tinha cérebro cinquenta por cento maior do que o de seu antecessor, e apresentava dimorfismo sexual menor. A ele é atribuído o uso de fogo e a confecção de ferramentas mais elaboradas, como machados de pedra.
Convivendo com outros hominídeos (Australopithecus e Parantropus), conforme provam achados fósseis, o H. erectus conseguiu migrar para outras regiões fora da África; é dele a origem do Homo sapiens, o primata nu por excelência. Na Europa e na Ásia surge o Homo sapiens neanderthalensis há cerca de 400 mil anos. A África é o berço dos primeiros Homo sapiens sapiens, há 300 mil anos, tendo migrando depois para a Europa e Ásia entre 100 mil e 30 mil anos atrás. A competição com o H. sapiens sapiens, caçador-colhedor, de dieta variada e maior habilidade na confecção de ferramentas, levou à extinção os neandertalenses há 28 mil anos, talvez porque estes, ao contrário daqueles, eram apenas caçadores, comedores de carne, tendo dizimado seus recursos naturais de sobrevivência.
Que consequências teve a perda dos pelos do corpo, fora aquelas a que me referi no artigo anterior, é o que tratarei em seguida.
Diferentemente de todos os demais hominídeos e da maior parte dos mamíferos terrestres, o Homo sapiens sapiens tornou-se um primata nu. O uso de fogo — inicialmente para afugentar animais e se aquecer (desde o H. erectus) sendo depois utilizado para cozer alimentos —, associado à confecção de lança, para caçar e se defender, de roupas feitas com peles de animais, para a proteção do corpo nu, e de cavernas e rústicas habitações como moradias, permitiram-no colonizar todos os continentes, quentes e frios, tórridos e congelantes, espalhando-se da África para a Europa, Ásia, Oceânia e Américas. A pele exposta teve consequências dramáticas, tanto de ordem fisiológica com social.
O primeiro ponto a considerar-se é a termorregulação, ou seja, o ganho e a perda de calor do corpo. A posição ereta assumida pelos hominídeos diminuiu em 70% a incidência de raios solares no corpo humano, comparado com um animal quadrúpede de mesmo porte, reduzindo, dessa forma, a quantidade de calor recebida e de radiações perigosas, o que constituiu grande vantagem evolutiva; glândulas sudoríparas numerosas esfriam mais eficientemente o corpo sob condições de calor extremo e de intensa atividade física.
A perda de pelos, como mostrei, foi vantajosa para a espécie humana sob as condições abertas e quentes da Savana africana. Por isso, e ao contrário dos predadores mais eficientes, leões e esmilodontes (tigres dentes-de-sabre, já extintos), por exemplo, que caçam principalmente à noite, graças à boa visão noturna e pela impossibilidade de evitarem o superaquecimento do corpo durante as horas mais quentes do dia, pois densa é a pelagem do corpo, o homem caçador-colhedor, sem boa visão noturna, mas com eficiente mecanismo termoregulador, usando de instrumentos (lança e fogo) e de estratégias de caça em grupo, para os quais as presas não poderiam devolver mecanismos evolutivos de defesa em curto prazo, o homem tornou-se um caçador extraordinário e ameaçador.
Caças abundantes permitiram o crescimento da população hominídea na Savana. Rareando as presas, com aumento da competição e da rivalidade entre grupos humanos não familiares, o homem passa a lentamente estabelecer seu domínio em novos territórios da África. O Saara não constituiu obstáculo, pois este imenso deserto de hoje era coberto por densas florestas tropicais, por entre as quais corria o rio Nilo, que desaguava no Atlântico e não, como desde milhares de anos, no mar Mediterrâneo. O deserto do Saara formou-se há pelo menos dez mil anos e as migrações humanas para a Europa e Ásia deram-se milhares de anos antes. Áreas mais frias do Hemisfério Norte obrigaram ao uso de vestimentas (peles de animais) e abrigo em cavernas e habitações rudimentares, adaptações necessárias para evitar a perda de calor do corpo sem pelos (hipotermia). Corpo maior, mais robusto, como o do Homo sapiens neanderthalensis, que viveu na Eurásia por 370 mil anos, parece estar relacionado com a diminuição da superfície em relação ao volume, perdendo menos calor, como demonstrei no artigo anterior: maior volume, menor superfície.
O segundo ponto que merece destaque é a mudança da cor da pele, vantagem adquirida por seleção natural e evolução. Com menos pelo, a pele, que antes devia ser branca como a dos chipanzés, torna-se negra pela maior quantidade de melanina, evitando os perigosos raios ultravioleta, intensos no ambiente aberto da Savana africana, sendo esta talvez a mais importante das adaptações.
A colonização de novas áreas fora da África foi significativa para mudanças na cor da pele exposta. Conforme a região e o isolamento genético das populações humanas, de negra a cor da pele passa a branca, amarela e vermelha, como adaptações necessárias à sobrevivência da espécie, notadamente à produção de vitamina D. Sob a intensa radiação ultravioleta equatorial, predominante na África, a melanina em maior quantidade conferia proteção contra os raios UV, capazes de provocar cânceres de pele e outras patologias. Quando o Homo erectus deixa a África há cerca de 1,8 milhão de anos e o Homo sapiens há perto de 55.000 anos, colonizando a Eurásia, a pele escura de alto teor de melanina impedia a síntese de vitamina D pela pele (a melanina é capaz de reduzir de até 99,9% a atuação dos raios UV), de forma que a seleção natural atuou no sentido da sua despigmentação, o que tornou possível a produção de vitamina D sob condições mais setentrionais, de baixa radiação ultravioleta, evitando o raquitismo e a osteomalácia.
A quantidade de pelo remanescente no corpo humano depende da cor da pele e do sexo. Indivíduos de tez branca (“raça” branca) são os que apresentam maior quantidade de pelos desenvolvidos, notadamente os europeus morenos, máxime portugueses e espanhóis, mas também árabes e judeus; ameríndios, ou seja, indígenas americanos (“raça” vermelha) e os indivíduos de tez amarela (“raça” amarela), tais como mongóis, chineses e japoneses, são os que os têm em menor quantidade; as etnias africanas (“raça” negra) apresentam pelos em quantidade intermediária.
Homens apresentam mais pelos desenvolvidos do que as mulheres, devido à maior quantidade de testosterona. Barba, bigode, cavanhaque, costeletas e pelos no peito, costas, abdome, axilas, braços e pernas são caracteres diferenciais entre homens e mulheres, tendo forte conotação sexual, razão pela qual as mulheres os admiram no sexo oposto, mas odeiam tê-los em si, depilações sendo frequentes até mesmo em pelos que desempenham funções importantes, como as pestanas, cada vez mais finas. É interessante notar a existência de um fenômeno genético raro chamado hipertricose, em que mulheres e homens apresentam o corpo todo coberto por pelos densos, à maneira dos ancestrais da espécie humana atual. Julia Pastrana, mulher mexicana, de rosto simiesco (daí ser conhecida como “Mulher Macaco”) foi uma das mais famosas vitimas dessa doença genética; um quadro dela ainda existe no prédio do antigo Departamento de Zoologia da Esalq, sendo usado pelo professor emérito S. de Toledo Piza Jr., para fazer valer suas ideias acerca da evolução humana, tarefa muito difícil naquela época.
Um aspecto negativo, entretanto, foi considera-se a cor da pele objeto de discriminação racial, razão suficiente para que, na atualidade, o conceito de raça para a espécie humana tem sido acirradamente debatido, com a tendência de considerá-lo obsoleto. Civilizações avançadas surgiram na Europa, na África, na Ásia e nas Américas, por povos de tez branca (romanos, gregos, assírios, babilônios), parda-negra-branca (egípcios), negra (kushitas, axumitas), vermelha (astecas, maias, incas) e amarela (mongóis, chineses e japoneses), provas suficientes para se descartar a superioridade de uma raça sobre outra.
Quando a América foi descoberta em 1492 e colonizada nas décadas que se seguiram, os índios, levados à Europa como criaturas tão estranhas e desconhecidas como o abacaxi, o milho e o algodão, não foram considerados seres humanos, sendo por isso, e por outras razões, impiedosamente escravizados, assim como os negros africanos. O que desconheciam, e muitos insistem em continuar desconhecendo, é que a natureza operou, em milhões de anos, por mecanismos próprios, como faz com todos os seres viventes, no sentido de diversificar as populações humanas, como forma de garantir a sobrevivência da espécie, selecionado aquelas que melhor se ajustavam às condições ecológicas locais. Cor da pele é um desses mecanismos adaptativos que garantiu, até agora, que o ser humano pudesse viver nos mais diversos biomas e ecossistemas do nosso planeta, que não é branco nem negro, tampouco amarelo ou vermelho, mas azul, igualmente azul para todos nós seres humanos.
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Embate entre Australopithecus robustus (ao fundo) e Homo habilis (esquerda) na Savana africana. Observe o corpo coberto de pelos densos na espécie A. robustus e sua redução no H. habilis, e o uso de pedras lascadas por este último, ao contrário das pedras brutas usadas para defesa pelos primitivos australopitecinos. Esquema reproduzido do livro Early man, Life Nature Library. |