Pesquisar neste blog

quarta-feira, 28 de novembro de 2018

Aspectos Históricos da Agricultura Paulista: Parte 3. Ascensão, fastígio e declínio da canavicultura paulista

Adilson D. Paschoal
Professor Sênior da Esalq-USP

Século XVI. Novos fidalgos chegam a São Vicente. Moradias e higiene nos primórdios da colonização. O açúcar vira moeda corrente. A sofisticada fazenda Sant'Anna de Acarahu. Engenho São Jorge dos Erasmos: Um dos maiores de São Vicente. Decadência da canavicultura.



Corria o ano de 1550 quando uma pequena frota, vinda do Funchal, ilha da Madeira, aporta na vila de Santos. Dentre seus passageiros destaca-se o fidalgo madeirense Pedro Leme, que vinha trazendo sua esposa Luísa Fernandes e a filha Leonor Leme, esta acompanhada de seu marido, igualmente fidalgo da casa real, Brás Esteves. Vinham, também, na pequena frota, imbuídos de fundarem um colégio, os primeiros jesuítas.


Pedro Leme assim que chega à sua nova pátria, com sua família, manda construir, na vila de São Vicente, uma casa de pedras, com cobertura de telhas vindas da Metrópole, no mesmo estilo urbano de Portugal. Assim como na maior parte da Europa medieval, a casa tinha um único cômodo, sem divisões internas, única janela e única porta, sendo o chão de terra batida. Apesar da fidalguia do proprietário, o mobiliário da casa era simples, com a indispensável arca, de múltiplas funções, uma cama mais larga do que comprida, para acomodar de duas a oito pessoas, sendo fechada com cortinas a prova de mosquitos. A rusticidade do ambiente da nova nação que surgia fez Luísa Fernandes relembrar-se das comodidades que tinha no Funchal, proporcionadas pelas bem sucedidas atividades camponesas de seus ancestrais da Madeira, que cultivavam cana-de-açúcar e várias outras culturas e criações animais. Graças ao seu casamento com o nobre da Casa Real, Pedro Leme, podia ter à mesa o pão fino de cereais ─ o principal alimento do dia a dia ─, complementado com vinhos, carnes, peixes, legumes, frutas, azeite e queijo, enquanto que a maioria pobre consumia apenas o pão escuro, feito de aveia: o chamado “pão da escassez.” Vinham-lhe à mente as palavras de sua mãe, que dizia aos filhos, como que para alertá-los: “A hierarquia das pessoas eh vista pela cor do pão que comem.”


Na rústica, mas fortificada moradia, Pedro Leme conjetura se a nova terra poderia dar-lhe, no futuro, o que tivera no passado. Da mesma forma que na Europa, as casas na Colônia não eram ainda lares na acepção exata da palavra: eram, sim, apenas dormitórios e abrigos contra as intempéries e as hostilidades do meio, que, aqui, vinham dos índios e dos corsários.

A maior parte do tempo passava-se nas lavouras e nas matas. O clima quente e a abundância de água não modificaram o hábito da higiene pessoal dos pioneiros. Era-lhes estranho e condenável que os indígenas se banhassem todos os dias nas límpidas águas dos rios e riachos, pois, desde os tempos de seus tataravós, banhar-se em excesso era tido como prejudicial à saúde; tomar mais do que dois ou três banhos por ano era desaconselhável em toda a Europa. Muitos seguiam os monges, que tomavam apenas dois banhos por ano: antes da Páscoa e antes do Natal. O alto custo do sabão e sua raridade faziam com que as roupas também fossem lavadas apenas duas ou três vezes a cada ano e, por isso, sem que se soubesse o motivo, vivia-se infestado de piolhos, pulgas, percevejos e traças.


Moradia de um cavaleiro fidalgo em São Vicente, nos primórdios da colonização. Em casas como esta, construída de pedras e coberta de telhas portuguesas, moravam os colonizadores mais ricos. Casa de Martim Afonso de Sousa. Óleo de Benedito Calixto, Pinacoteca Benedito Calixto, Santos, SP.

São Vicente já era uma vila bem estabelecida. Em 1549, criara-se a primeira escola-seminário para meninos brancos e índios, ampliada em 1553, para se tornar o segundo colégio dos Jesuítas do Brasil. Oito engenhos operavam na ilha de São Vicente e um na de Santo Amaro. O açúcar que produziam era moeda corrente, sendo que uma arroba de açúcar fino era cotada a 400 réis, enquanto que um alqueire de arroz valia apenas 50 réis. Dinheiro, assim como vinho e tudo o mais, vinha de Portugal ou da Madeira, e era de posse exclusiva dos fidalgos e do clero. Em seu caminho de volta, depois de descarregarem as mercadorias, os navios levavam o precioso açúcar.

O trabalho nos engenhos era feito por escravos indígenas, comprados por 4.000 réis cada um, valor esse que a Câmara de São Vicente taxou como máximo, quando era vendido por outro índio, que recebia, em pagamento, ferramentas, contas de vidro, búzios e outras bugigangas.

Em São Vicente, Pedro Leme logo se torna o primeiro povoador de uma das mais famosas fazendas da época: Sant'Anna de Acarahu, que compreendia uma extensa área agrícola, onde foi construído, em uma colina, um vasto solar, e, cerca de 200 m dele, uma capela. Ruínas dessa primitiva propriedade rural existiram até fins do século XIX. Nessa fazenda, bem mais tarde, em 1715, nasceria um dos principais historiadores da Capitania de São Vicente: Gaspar Teixeira de Azevedo, depois frei Gaspar da Madre de Deus, de abastada família, que havia adquirido suas terras do antigo povoador. Seu livro “Memórias para a História da Capitania de São Vicente”, foi editada em Lisboa em 1797.


A vila de São Vicente, em meados do século XVI, não tinha mais do que oitenta habitantes de origem européia, afora grande contingente de indígenas aculturados. Os engenhos de açúcar tornaram muito rica a vila, atraindo, assim como a descoberta de ouro, novos colonizadores. Convocação popular para um ato público em São Vicente. Tela de Carlos Fabra. Prefeitura Municipal de São Vicente

Em 1550, com a morte do alemão Erasmo Scheter, Brás Esteves e sua esposa Leonor Leme adquirem, em sociedade com outros fidalgos, inclusive com João do Prado, o engenho de São Jorge dos Erasmos e, com o lucro obtido com a venda de açúcar, formam rapidamente fortuna, vivendo abastados com sua família por muitos anos na vila de São Vicente.
O engenho compreendia uma área de quase 50.000 m2, com 3.200 m2 de construção, feita de pedras, areia e cal de conchas. A sede, montada com todo o conforto vindo de Portugal, era construída de blocos de granito. Além de uma capela com cemitério, havia uma construção para o trabalho e moradia dos escravos indígenas, que eram mais de setenta, e de trabalhadores livres.
O engenho propriamente dito era acionado por uma roda d'água, de eixo horizontal, que movia uma mó de pedra, de um metro de diâmetro, que fazia girar os eixos com os quais se esmagava a cana para obter o caldo. Após fervido, o melado era posto em fôrmas de pães de açúcar, onde ficava por quarenta e cinco dias, após o que os blocos de açúcar endurecidos eram retirados. A parte superior, mais clara, era a parte nobre, destinada à exportação; a inferior, de açúcar mascavo, era para consumo interno. Construído sobre uma plataforma de terreno, com a retaguarda voltada para um morro e a frente protegida por muros de arrimo de pedra, o engenho resistia aos ataques frequentes dos índios; não resistiu, entretanto, às escaramuças com piratas ingleses, que assolavam as costas brasileiras desde 1580, quando o trono português passa para a Espanha, que, na época, guerreava com a Inglaterra.


O Engenho dos Erasmos ocupava quase 50.000 m2, com 3.200 m2 de construção, feita de pedras, areia e cal de conchas. A sede, montada com todo o conforto vindo de Portugal, era de blocos de granito. Além de uma capela, com cemitério, havia uma construção para o trabalho e moradia dos trabalhadores livres e dos escravos indígenas. Ruínas do engenho São Jorge dos Erasmos. Ilustração de Benício.

O açúcar de São Vicente e de Santos, que fez muito ricas essas duas vilas, começa a declinar como atividade econômica desde o surgimento de engenhos nas capitanias de Pernambuco e da Bahia. Em 1583, havia trinta e três engenhos na Bahia e sessenta e seis em Pernambuco. De 1615 em diante a pobreza crassa em Santos e em São Vicente.

Brás Esteves e Pedro Leme percebem que não podem competir com os senhores de engenho do Nordeste, mais próximos da Metrópole e que se utilizam da mão de obra de escravos africanos, muito mais eficiente do que aquela dos seus escravos silvícolas. Não dispõem de capital, assim como todos os outros portugueses da Capitania de São Vicente, para a compra de serviçais negros. O lucro na produção de açúcar também diminui, pois os índios já não aceitam bugigangas no escambo. Portugal, sob domínio espanhol, entra em decadência. Sua marinha perde a importância. Invasões estrangeiras tornam-se frequentes. As vilas esvaziam-se com a saída de contingentes armados para o norte da Colônia, em luta contra os holandeses. Nos terrenos alagadiços do litoral surgem muitas doenças. Uma epidemia de bexiga (varíola) aniquila um terço da população local, obrigando os índios a se aprofundarem muito mais no interior do sertão, até mesmo nos “desertos” da Amazônia. Navios raramente aí aportam.

Pela insegurança e decadência de São Vicente e de Santos, Brás Esteves e Leonor Leme decidem pela venda da parte do engenho que lhes cabia e pela mudança para a vila de São Paulo de Piratininga, onde Brás se estabelece e logo assume as rédeas do governo. A vila de São Paulo, por essa época, era muito cobiçada devido às hortas, pomares de marmelo e vinha, e lavouras de mandioca, milho, trigo, centeio, alguma cana e, pouco depois, algodão, que podiam, ao contrário do monocultivo canavieiro, ser cuidados pelo proprietário e sua família, de maneira muito parecida com o tipo camponês europeu. Os mais abastados podiam ter alguns escravos indígenas, para o trabalho em seus domínios. O clima era também mais salutar.

No planalto, a vila de São Paulo de Piratininga, com suas culturas de sobrevivência e sua população grandemente aumentada pela vinda de muitos vicentinos, sem canaviais e sem engenhos que lhe trouxesse riquezas, era a das mais pobres da Colônia, ficando isolada do litoral pela muralha da serra de Paranapiacaba (serra do Mar). Em 1606, tinha cento e noventa moradores, sendo de condições muito precárias, pois não interessava à Coroa Portuguesa a expansão da agricultura em regiões longínquas do litoral. Restava, assim, aos paulistas, o sertão desconhecido. A alternativa econômica era a busca de ouro e pedras preciosas, além de índios, principalmente daqueles catequizados pelos jesuítas, que valiam muito mais, pela pacificidade e adestramento em agricultura e trabalhos manuais ─ os “negros da terra” ou “gentios da terra” ─, como passaram a ser conhecidos. A presença do grande rio Anhembi (Tietê) e de seus afluentes facilitava o adentramento ao sertão. Como consequência, muitas entradas e bandeiras partiram de São Paulo, algumas para combater índios hostis, em suas aldeias.

Continua.

Referência.
Paschoal, A.D. História de uma família. Genealogia à luz da história. Tomo I. Séculos VIII a XIX. 430 p. Piracicaba, 2007.

Um comentário:


  1. Fantástico material, Minha Avó Laura Leme é descendente direta de Pedro Leme, filho de Antão Leme, primeiros Lemes no Brasil. O Mais interessante é que séculos depois a USP teve como reitor o primo da minha avó e descendente de mesma familia, o Prof. Ernesto de Moraes Leme.

    ResponderExcluir