ASPECTOS HISTÓRICOS DA AGRICULTURA PAULISTA.
Parte 1. VIAGEM RUMO AO DESCONHECIDO.
Adilson D. Paschoal
Professor Sênior da Esalq-USP
Ano de 1530. A cana-de-açúcar é levada para a Colônia. Fidalgos pioneiros e o sonho do enriquecimento rápido. Navegando em Incertezas. O “El Dorado”.
Era o dia 3 de dezembro de 1530. Os sinos de todas as igrejas de Lisboa tocam, simultaneamente, anunciando a partida de uma frota portuguesa em direção ao Brasil. Alguns dias antes de alçar velas no Tejo, em vento favorável, duas naus, um galeão e três caravelas já haviam recebido suas cargas usuais para viagens de longa duração através do Atlântico, em direção à terra recém descoberta por Cabral: centenas de tonéis de água, vinho, azeite e vinagre, centenas de quintais de biscoito, toucinho, bacalhau, arroz e queijo, e muitas fanegas de grão-de-bico e frutas secas. O comandante dessa frota, Martim Afonso de Sousa, vinha a mando do rei D. João III, iniciar a colonização do Brasil.
Semanas antes da partida, viera do Funchal, na ilha da Madeira, a mando do capitão-mor, um galeão em cujos porões se fez transportar muitas mudas de cana-de-açúcar, sementes de várias plantas e os primeiros animais domésticos a serem criados no Brasil. Nele também transportou-se todo o mecanismo desmontado de dois engenhos de açúcar, os primeiros a serem instalados no país do pau-de-tinta. Martim Afonso definira, estrategicamente, desenvolver a colonização da nova terra através da agricultura, com base na cana-de-açúcar. Nenhum outro lugar era mais adequado a tal propósito, isto é, de obtenção de plantas e equipamentos para a produção de açúcar, do que a Madeira. Agricultores, alguns escravos negros e técnicos açucareiros experientes como moedores, caldeireiros e purgadores de açúcar, além de navegadores, padres, artífices de vários ofícios e muitos milicianos armados, integravam a tripulação, de mais de quatrocentas pessoas.
Nos camarotes da popa, reservados às pessoas mais influentes e ricas, iam embarcados vinte e sete fidalgos, especialmente convidados por Martim Afonso, com a aprovação do rei, para investirem suas fortunas na nova colônia, recebendo da coroa portuguesa, através de carta de doação de sesmarias, as terras que lhes fossem necessárias. Dentre esses fidalgos iam Antão Leme, tetraneto de Martin Lems, do condado de Flandres, Bélgica, e alguns de seus criados, vindos do Funchal, levando, como a todos a bordo, muita esperança de enriquecimento rápido. Entrementes, Antão deixava no cais do porto esposa e o filho Pedro, cujos acompanhamentos, no oceano tormentoso e pouco navegado, cheio de terríveis monstros marinhos, e nas terras desconhecidas e hostis brasileiras, eram de todo desaconselháveis. A escolha de Antão, entre os fidalgos que vinham com Martim Afonso, justificava-se não só pela sua nobreza e parentesco com o donatário da Ilha, mas pela experiência que tinha como administrador de engenhos e técnico açucareiro.
Com idêntico propósito de implantar engenhos para o fabrico de açúcar e aguardente vinham o fidalgo judeu genovês José (Giuseppe) Adorno e quatro de seus irmãos, e o fidalgo português Pedro de Góis, depois donatário de uma capitania. Do Porto, os fidalgos portugueses João Pires, por alcunha “O Gago”, e seu filho Salvador Pires somavam-se a eles. Ainda de Portugal, de Olivença, vinha o fidalgo João do Prado, e de Lamego, o nobre fidalgo de geração e médico Antônio Rodrigues de Alvarenga, todos solteiros e muito jovens, assim como o capitão-mor, que não tinha mais do que trinta anos.
Os nobres vinham atraídos não só pelas terras, que teriam em profusão no novo continente, mas também pelas notícias, que corriam céleres em todo Portugal, das riquezas em ouro e prata do Brasil. Na viagem, comentam do bugre que, a bordo da nau de Cabral, em 1500, nos dizeres de Pero Vaz Caminha “pôs olho no collar do Capitãn, e começou a acenar com a mão para a terra e depois pera o collar, como que nos dizia que avia em terra ouro. E também viu um castiçal de prata, e assy mesmo acenava para a terra e depois para o castiçal, como a dizer que avia na terra tambem prata.” Falam de Américo Vespúcio que, em 1503, dizia haver tanto ouro que os selvagens nem sequer faziam caso dele: ...“o paiz não produz outro metal senão ouro, do qual ha grandissima abundancia.” Falam, ainda, do oficial inglês Walter Raleigh, que mencionava a cidade de Manôa, chamada “El Dorado” pelos castelhanos, cujo rei toda manhã untava seu corpo de gomas perfumadas e mandava que seus escravos, com tubos, lhe soprassem por cima densas nuvens de ouro em pó, formando um manto dourado. À noite, lavava todo aquele pó riquíssimo, lançando-o fora, para, no dia seguinte, começar tudo de novo. E onde ficava esse fabuloso reino senão no Brasil, diziam eles, procurando ocultar as dificuldades porque passavam a bordo.
A viagem transcorre com muitas adversidades. Poucos dias depois da esquadra levantar âncora, sucedem calmarias, que duram mais de uma semana. Seguem-se tempestades, com ventos fortíssimos, que escurecem o céu antecipando a noite, fazendo as naus balançarem perigosamente de um lado e de outro, iluminando o firmamento descargas elétricas apavoradoras, fazendo-os pensar que haviam chegado ao fim do mundo, onde a Terra, que poderia afinal ser mesmo plana, terminava em imenso abismo. Tenso, Antão se recorda das histórias contadas por seu pai Antônio, célebre navegador, de que, em tormentas como estas, muitos homens caiam ao mar e eram perdidos. Também, de serem frequentes que tripulantes e passageiros fossem acometidos de febres agudas, sendo sangrados várias vezes, enxaropados e purgados, recebendo alimentos frescos para a cura. O escorbuto, desconhecido na época, era a pior peste a bordo, sendo responsável pela maior parte das mortes. A absoluta falta de higiene espalhava doenças entre os passageiros e tripulantes, que chegavam a vomitar ou defecar uns sobre os outros. Ao mau odor dos excrementos fazia-se juntar o mau cheiro do cordame, do couro e do piche. Alimentos frescos ou bem conservados eram a salvação, mas só quem os podia levar salvava-se.
Ao se deparar com vários enfermos a bordo, em estado grave, Antão recorda-se do que lhe contara sua mãe Catarina, da terrível epidemia de peste negra que assolara a Europa entre 1346 e 1352, e de tantas outras de cólera, responsáveis pela morte de milhões de pessoas no século XIV, e que ainda vitimavam muita gente, quer em terra, quer a bordo de navios. Emocionada, sua mãe falava-lhe da aterrorizante peste, em que os doentes apresentavam dolorosos bubões, do tamanho de ovos, no pescoço, nas axilas ou nas virilhas, por onde escorriam pus e sangue, além de manchas escuras de hemorragias internas, que matavam em poucos dias. Era tão grande o medo do contágio, que até mesmo os pais abandonavam seus filhos à sorte. Fugiam para o campo os magistrados e os notários, recusando-se a fazer o testamento dos agonizantes; fugiam os padres, em pânico, diante da perspectiva de ouvir as confissões dos moribundos; fugiam também os médicos, e os poucos que ficavam receitavam poções a base de melaço de dez anos, picadinho de serpente, pílulas de chifre triturado de veado, mirra, açafrão, e para quem podia se dar ao luxo — ouro em pó, esmeraldas ou pérolas trituradas.
— “Ira de Deus pelos pecados do homem!”, dizia, em lamento, a sua mãe Catarina.
— “Interação desfavorável dos astros!”, contestava seu pai Antônio, com base em relato, de que tinha conhecimento, dos mais importantes médicos da Universidade de Paris.
Nas costas de Pernambuco, após dois meses de viagem em alto mar, e em outras partes, a frota de Martim Afonso enfrenta corsários franceses que contrabandeavam pau-brasil. No litoral pernambucano, na Feitoria de Itamaracá, já operava, desde 1516, um engenho de açucar, o primeiro do país.
Na baía de Todos os Santos, os colonizadores conhecem Diogo Álvares Correia, o “Caramuru”, e sua mulher, a índia Paraguaçu. Ouvem, atentos, à trágica história, narrada por Diogo, do naufrágio da caravela em que ia em direção à Índia, dos seus companheiros que foram trucidados e devorados pelos nativos, e da sua sobrevivência graças à astúcia e à arma de fogo e pólvora que conseguira retirar dos escombros do navio soçobrado.
No local do futuro Rio de Janeiro, param por três meses, tempo em que dois bergantins são construídos para a exploração das costas brasileiras. Bergantim era uma embarcação similar à galeota, sendo de menores dimensões, com uma coberta corrida, com oito a dez bancos para os remadores, e que podia armar uma vela. Querendo logo descobrir o fabuloso ouro do país lendário, o capitão manda quatro de seus mais corajosos marujos pela terra adentro. Dois meses depois, alguns deles retornam com notícias maravilhosas. Haviam caminhado cento e quinze léguas sertão adentro (460 km, embora a distância percorrida tivesse sido muito maior) e chegaram até os chãos do Paraguai, onde índios amistosos contaram-lhes notícias febrentas de um país longínquo, terra de incas, onde, à beira de uma lagoa, encontrariam “imensa prata e imenso ouro.” Era o lendário “El Dorado”
Prosseguindo em sua narrativa, os bravos homens de Martim Afonso contam que Aleixo Garcia, que lá ficara, havia organizado com eles uma bandeira e, contando com os índios, chegara ao Peru, onde se ingurgitara de ouro e prata, rapinados dos incas, retornando depois ao Paraguai, todos muito ricos. A Aleixo, entretanto, o destino reservara uma tragédia: havia sido morto em uma emboscada. Apesar disso, o destino fizera com que a notícia chegasse aos ouvidos dos colonizadores: “No Rio do peraguay ha muito ouro e prata”...
Na ilha de Cananéia, depois de passarem pela de São Vicente, os colonizadores param por quarenta e quatro dias, e vêem partir ao interior uma expedição de oitenta homens bem armados, entre besteiros e espingardeiros, comandados por Pedro Lobo, sob a promessa de trazerem quatrocentos índios carregados de muito ouro e prata, garantida por dois degradados portugueses: Francisco de Chaves e outro, por alcunha “Bacharel”, que aí viviam com índios e alguns espanhóis. Tratava-se da riqueza dos incas, cuja notícia havia passado de aldeia em aldeia através do imenso sertão. Pedro Lopes de Sousa, irmão do capitão-mor, deixou escrito esse episódio, com o português que se grafava naqueles idos tempos: “Quinta fª xbij dias do mes dagosto veo pedre añes piloto no bargantim e cõ elle veo fr.co de chaves e o bacharel e cinquo ou seis castelhanos. este bacharel avia xxx años q estava degradado nesta terra e o fr.co de chaves era muy grãde linguoa desta terra. pella enformaçam q della deu aa capitam .J. mandou a p° lobo com oitenta homens q fossem descobrir polla terra dentro porq ho dito fr.co de chaves se obrigava q em dez meses tornara ao dito porto cõ quatro centos escravos carregados de prata e ouro. Partiram desta ylha ao primeiro dia de setembro de mil e 1531 os quarenta besteiros e os quarenta espingardeiros.”
Continua.
Referência.
Paschoal, A.D. História de uma família. Genealogia à luz da história. Tomo I. Séculos VIII a XIX. 430 p. Piracicaba, 2007.
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