Adilson D. Paschoal
Professor Sênior da ESALQ-USP
Séculos XVIII e XIX. Com a liberdade aos índios a escravidão aos negros. De bandeirantes a agricultores pela segunda vez. Com a cana-de-açúcar e a pecuária recupera-se a Capitania de São Paulo.
Cais do Funchal, ano de 1710. Quatro naus de bandeira portuguesa alçam suas velas de cruz de malta rumo ao Brasil. Em uma delas, na popa, Thomé Rodrigues Nogueira do Ó, em disfarçado sorriso, demonstrando firmeza e determinação, acena repetidas vezes no sentido do cais, de onde, em resposta, vêm acenos de maior vigor e emoção, de seus pais, os nobres da Casa Real Antônio Nogueira e Francisca Fernandes do Vale. Ao repicar de sinos, gritos e lamúrias, a figura de Thomé pouco a pouco vai desaparecendo da vista de sua mãe, não só pelo afastar célere da nau, mas também pelas lágrimas copiosas que lhe turvam a vista. Um último e derradeiro aceno é dado, à distância, por Thomé, que muito bem sabia que da Colônia talvez não mais voltasse para ver a terra em que nascera. Consolava a pobre mãe a esperança de que a relíquia que Thomé levava consigo ─ a sagrada e reverenciada imagem de Nossa Senhora de Monte Serrate ─, que lhe confiara seu pai, pela crença e tradição da família, haveria de protegê-lo de todas as adversidades do meio hostil que estava por enfrentar.
Nas cálidas noites de calmaria, balouçando suavemente a embarcação sobre as ondas, que quebravam sem grande força no costado do navio, Thomé se põe a pensar na ilha que deixara para trás, nos seus antepassados mais remotos, vindo de Algarves, e que colonizaram a Madeira como agricultores, cultivando videiras, castanhas, cereais e frutas temperadas e tropicais, que aí cresciam graças à diversidade climática criada pelo relevo montanhoso. A cana-de-açúcar, porém, foi a cultura que por duzentos anos, nos séculos XV e XVI, fez rica a Madeira. O açúcar brasileiro e o vinho madeirense foram as riquezas maiores que tornaram abastados seus ancestrais mais recentes, como recorda ele. A decadência dessas atividades
na ilha e no Brasil, devida principalmente à concorrência do açúcar da Holanda, produzido nas Antilhas desde a expulsão dos holandeses do Brasil, e o domínio flamengo de grande parte dos mercados consumidores europeus, fez com que surgisse a primeira grande crise econômica na Colônia e, consequentemente, na Metrópole. O ouro, recém descoberto, surgia como grande esperança para Thomé, assim como para todos os portugueses, sobretudo os mais jovens. Entre trezentos mil e seiscentos mil portugueses vieram para o Brasil durante o ciclo do ouro.
Thomé (depois capitão-mor) e Maria Leme do Prado (mulher com quem se casara no Brasil) são os fundadores de Baependi (MG). Um de seus netos, o tenente Urias Emídio Nogueira de Barros, viria a se tornar abastado tropeiro, buscando mulas em Viamão (Rio Grande do Sul) para vendê-las em Sorocaba e na região das Minas Gerais (certa ocasião, ele trouxera perto de dez mil mulas em uma única viagem); seria, também, por volta de 1815, o maior produtor de trigo de toda a Província de São Paulo, na região de Itapetininga.
Desde os tempos em que os paulistas se embrenharam nos sertões à cata de ouro, o que se deu desde o inicio do século XVII, durando o ciclo do ouro por mais da metade do século XVIII, a Capitania de São Paulo convertera-se em imenso território. Com o crescimento das Minas Gerais, que se enchia de novos povoados, com igrejas suntuosas e belas fazendas de gado e lavoura, os capitães-generais (governadores) residentes em São Paulo não conseguiam mais governar; por isso, criou-se a Capitania das Minas Gerais, separada da Capitania de São Paulo. A consequência da perda do imenso território foi o empobrecimento e o despovoamento de São Paulo, para o que também contribuiu a abertura do Caminho Novo.
A descoberta de ouro em Mato Grosso (1719), nas proximidades de onde se erguera o arraial de Cuiabá em 1718, traz hordas de aventureiros para o local. Dizia-se que era tanto o ouro que os caçadores o usavam como munição, ao invés de chumbo. Subindo o Tietê e outros rios, na esperança de chegarem rapidamente às fabulosas minas, muitos aventureiros morreram de febres nos pântanos, ou varados por flechas arremessadas por temíveis selvagens. O Caminho de Goiás, ou Picadão de Cuiabá, aberto em 1726, primeiro conduziu bandeirantes, depois tropeiros e, finalmente, agricultores e criadores de gado.
No mesmo ano em que se concluiu a abertura do novo caminho para Cuiabá redescobre-se as minas das terras dos índios Goiases, em que as mulheres enfeitavam os cabelos com lâminas de ouro. Funda-se aí o arraial de Sant’Ana, elevado à vila administrativa dez anos depois, com o nome de Vila Boa de Goiás (Goiás). A incorporação dessas novas terras à Capitania de São Paulo pouco resultou de positivo, uma vez que era muito difícil o transporte do ouro dessa região até o Rio de Janeiro, passando por São Paulo, optando-se pelo escoamento pela bacia do Amazonas. Em 1738, os territórios de Santa Catarina e do Rio Grande são desmembrados de São Paulo, e, em 1748, era a vez dos territórios de Mato Grosso e de Goiás.
Afora esses, outro terrível impacto na economia de São Paulo foi o decreto de 1758, do Rei D. José, que concedia liberdade definitiva a todos os índios do Brasil. Grande número de famílias, que não possuía outros bens senão os escravos indígenas, se viu arruinada. Era tal a miséria em São Paulo que, em 1748, a capitania é extinta e incorporada à do Rio de Janeiro. São Paulo, no dizer de um de seus governantes “não passa de uma bela moça sem dote.” A transformação de São Paulo em simples distrito do Rio explicava-se por questões de fronteira entre as Capitanias das Minas Gerais e de São Paulo, do que se aproveitou o capitão-general mineiro Gomes Freire para convencer o rei a tomar tal decisão. Parte do território paulista passa, assim, para Minas.
Tal situação de penúria perdura por quinze anos, São Paulo voltando a ter prestígio com a cultura da cana-de-açúcar, tornando-se novamente capitania em 1765. A decadência da exploração das minas e a proibição da caça aos índios obrigam os paulistas à renúncia das atividades que exerciam por mais de dois séculos, transformando-os novamente em agricultores. A escravidão volta-se para os negros vindos da África, embarcados no porto de Santos. Numerosos engenhos de açúcar e alambiques para a produção de cachaça são construídos no planalto paulista, e nas áreas onde havia pastagens surgem fazendas de gado, de cavalos e de muares. As criações animais tornam-se a principal riqueza da capitania, graças aos abundantes pastos naturais. Algodão e fumo, além de milho, mandioca e outras
culturas de consumo interno, são amplamente cultivados.
A decadência dos senhores de engenho nordestinos e o fim do ciclo do ouro mineiro cria nova oportunidade para a canavicultura paulista no século XVIII. Engenho. Desenho de Benício.
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Pelos incentivos de Morgado Mateus, nomeado capitão-general em 1765, a cana-de-açúcar transforma vários povoados em importantes vilas. Assim, surge a vila de São Carlos (Campinas) em 1797, no antigo povoado de Campinas do Mato Grosso, que tinha esse nome devido às suas densas florestas; o povoamento fora fundado pelo taubatense Francisco B. Leme, em 1739. A antiga vila de Itu, criada em 1657, desenvolve-se extraordinariamente a partir de 1777, com a exportação de açúcar para a Europa, a partir do porto de Santos. Os solos férteis do povoado de Nossa Senhora dos Prazeres (Piracicaba), fundado em 1767, atraem muitos agricultores, que passam a produzir cana e a fabricar açúcar.
A cana-de-açúcar não produzia bem na área rural da cidade de São Paulo, sendo mais cultivada nas vilas próximas, de Campinas, Jundiaí, Itu e Piracicaba. Legumes, cereais e frutas eram, entretanto, produzidos em suas numerosas chácaras. Dessa forma, a riqueza da cidade girava em torno de seu comércio centralizador.
A vinda ao Brasil de D. João VI, em 1808, fez crescer muito a cidade, por onde passa todo o precioso açúcar produzido pelos inúmeros engenhos da redondeza, seguindo para a Europa pelo porto de Santos. Entrementes, a riqueza trazida pela gramínea açucarada não livrara os donos de engenho de dificuldades financeiras. Quando morriam, seus escravos eram repartidos entre os filhos. Questão de honra para eles era que os filhos também se tornassem senhores de engenho. Para isso, compravam mais escravos. Com a morte de muitos deles, por doenças ou maus tratos, os novos proprietários de engenhos eram obrigados a comprar outros mais, agora a crédito, endividando-se. Os fazendeiros paulistas não moravam em suas fazendas, vivendo na cidade de São Paulo ou em vilas, misturados a funcionários públicos, artesãos, negociantes e proprietários de casas urbanas.
A vila que mais se desenvolveu com o comércio do açúcar foi Itu. Partindo de São Paulo em direção a esta vila, atravessava-se região de campos entremeados por maciços de árvores e pastos, trilhava-se por montanhas cobertas de matas e capoeiras e vadeava-se ribeiros caudalosos, passando por terras antes dominadas pelos índios Guaianases, ora transformadas em fazendas de criar e terras de engenho. Pelo caminho, muitas mulas levando açúcar para Santos e algumas boiadas que iam para o Rio de Janeiro. Logo se avizinha a antiga vila de Itu, nos campos de Pirapitingui, que os índios chamavam “outu-guaçu”, referindo-se à grande cachoeira (salto de Itu). Fundada em 1610, elevada à vila em 1657, o local desenvolvera-se bem a partir de 1777, com a exportação de açúcar para a Europa. Anos mais tarde, entre 1836 e 1854, Itu se tornaria a vila mais rica de toda a província.
A vinda da família real portuguesa para o Brasil e as decisões tomadas pela Corte fizeram com que as relações comerciais da Capitania de São Paulo se expandissem, tornando-se mais importantes. A cabotagem reinicia e os agricultores conseguem vender mais vantajosamente seus produtos. A lavoura de cana-de-açúcar gera capital e os sertões paulistas passam a ser desbravados. Apoiado na economia açucareira, Morgado Mateus, mediante concessões de sesmarias, leva à ocupação do solo paulista até metade de seu território. A ideia era fornecer terras não muito grandes para que, rapidamente, se enchessem de gente.
Dada às dificuldades de alojar viajantes nas casas das fazendas, os ranchos ─ construções primitivas que os fazendeiros mandavam erguer à beira das estradas ─ passam a assumir importância cada vez maior. Neles os proprietários vendiam milho para as tropas, além de grande quantidade de mercadorias; a higiene era, entretanto, precária, com pó e lixo acumulados, em meio ao qual pululavam pulgas e bichos-de-pé.
A capital São Paulo era a mais importante e única cidade da capitania, apesar da miséria, que aos poucos ia se debelando. Poucas eram as diversões dos paulistanos: banhos no rio Tamanduateí, circo de touradas e uma espécie de teatro no estilo francês, além do batuque. Doenças como a icterícia e a lepra assolavam a população.
Em segundo lugar vinha a vila de Nossa Senhora da Ponte de Sorocaba (Sorocaba), onde se instala, em 1810, na antiga forja de Ipanema (estabelecida desde meados do século XVI), a Real Fábrica de Ferro de São João do Ipanema; dispunha, ainda, de intenso mercado de tropas. A vila e freguesia de Nossa Senhora do Desterro (Jundiaí) e a vila de São Carlos (Campinas) eram lugares importantes para o comércio do sertão, neles se organizando todas as tropas que partiam da Capitania de São Paulo para Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás.
Sobre as vilas onde se organizavam tropas, diz von Martius: “Os habitantes possuem grandes manadas de mulas, que fazem essas viagens algumas vezes por ano. O fabrico de cangalhas, selas, ferraduras e tudo o que é necessário para o equipamento das tropas, assim como o maçante vaivém das grandes caravanas, dão ao lugar feição de atividade e riqueza e, com razão, dão-lhe foros de porto seco. Daqui partem estradas trilhadas para as províncias acima citadas.
Santos, pelo seu porto, e as tradicionais vilas do vale do Paraíba conheceriam seu maior esplendor por ocasião do ciclo do ouro negro: o café. Antes dele, o tabaco era a principal cultura do vale.
Em 1811, dá-se um fato extraordinário: estoura uma guerra entre o Brasil e os hispano-americanos do rio da Prata. Tropas são recrutas em apenas duas capitanias, justamente naquelas situadas mais próximas da área do conflito, ou seja, do Rio Grande e de São Paulo. Temendo as consequências de luta contra inimigo distante, de quem não se tinha conhecimento, grande número de paulistas emigra para Minas Gerais, esvaziando novamente a Capitania de São Paulo, aumentando muito a população daquela capitania.
O grande desenvolvimento da Capitania de São Paulo nas últimas décadas do século XVIII e início do século seguinte se deveu ao açúcar e ao comércio de animais. O progresso, a concessão de sesmarias (principalmente a noroeste da capitania, na fronteira com a região sul das Gerais, onde já havia muitos caminhos de tropas e ranchos de fazendas), e o despovoamento de São Paulo com consequente inchaço da região sul de Minas, fizeram com que muitas famílias mineiras voltassem às suas origens, nas promissoras terras dos intrépidos “mamelucos” ou “portugueses do planalto”, como pejorativamente se referia a esse povo, que estendeu suas raízes a todos os rincões e colonizou quase todo o imenso sertão brasileiro: os paulistas.
Continua.
Referência.
Paschoal, A.D. História de uma família. Genealogia à luz da história. Tomo I. Séculos VIII a XIX. 430 p. Piracicaba, 2007.