Adilson D. Paschoal
Professor Sênior da Esalq-USP
Séculos XIX e XX. Breve histórico de Constituição. Usina Monte Alegre e seu fundador: o Marquês de Monte Alegre. Fazenda “Nossa Senhora da Conceição”, em Jundiaí: de café a uva e vinho. Engenho Central, o primeiro a ter mão de obra assalariada. De senhor de engenho a usineiro e de escravo a colono.
A história de Constituição (Piracicaba) começa em 1º de agosto de 1767, quando o capitão-povoador Antônio Corrêa Barbosa, a mando de Morgado Mateus, capitão-general da Capitania de São Paulo, estabelece povoado à margem direita do salto do rio Piracicaba, para servir às embarcações que desciam o rio Anhembi (Tietê). A decisão do Cel. Barbosa contrariava a ordem que recebera, de que o povoado fosse criado na barra, para deter possível invasão castelhana vinda do Sul.
─ Nhô Barbosa! Mecê num vai fundá u puvuado na barra? ─ questiona, surpreso, Chico-piloto, proeiro-mor da nau capitânia, tão logo Antonio Correa Barbosa ordena levantar acampamento na barra e subir, contracorrente, o caudaloso rio Piracicaba.
─ Num carece di sê asi! — responde Barbosa. — A guerra c’os castelhano num si vence num lugá di sezão maleitosa cumo aqui, mais cum canoage de qualidade cumo as que si faiz das madera da parage junto ao barranco do sarto de Priscicaba...
Barbosa estava cheio de verdade. A temida invasão castelhana nunca ocorreu. E assim, na margem direita do rio, nasce Piracicaba.
A primeira atividade econômica do povoado, que serviu às viagens monçoneiras, foi a construção de barcos de altíssima qualidade, feitos de troncos gigantescos, que vicejavam nas margens do famoso salto, sendo que alguns batelões chegaram a ter metro e meio de boca por dezesseis de comprimento. Em 1774, a povoação constitui-se em freguesia, com população de duzentos e trinta almas, desmembrando-se de Itu. Em 1784, a freguesia é transferida para a margem esquerda do rio, logo abaixo do salto, onde era mais viável a sua expansão. Por não dispor de cemitério, e repetindo o que fazia na margem direita, o povo continuava a enterrar seus mortos na margem do rio, fato que causava reclamações, pois as valas rasas exalavam mau cheiro e protestos. Em 29 de novembro de 1821, ocorre a elevação à vila, sob o nome de Vila Nova da Constituição, em homenagem à Constituição Portuguesa, promulgada nesse ano.
Constituição era lugar agradável de se viver, e com certo conforto. Assim é que em 13 de abril de 1829 João Batista de Castro constrói o Hotel Central, na Praça da Matriz. A partir de 1836, a vila começa a se expandir com a agricultura, tornando-se importante centro abastecedor, com predomínio de pequenas propriedades, que além de café produziam arroz, feijão, milho, algodão e fumo; criava-se gado também. Tinha 10.291 habitantes e se orgulhava de ser, em toda a província, a vila com o maior número de pessoas que sabiam ler e escrever: 395 de seus moradores (3,8%). Em 1899, essa taxa chegaria a 50%.
Em grande escala produzia-se cana e café, culturas responsáveis pela vinda, em 1877, de um ramal ferroviário construído pela Cia. Ituana de Estrada de Ferro, permitindo conexão entre o transporte fluvial e o ferroviário. A Estação de Constituição é inaugurada com dois dias de festas, em que todas as fachadas dos prédios públicos e particulares são iluminadas com lampiões de querosene, lamparinas e velas, e fogueiras são acesas nas praças centrais. O prédio era simples armazém de cargas, com pequeno cômodo para o embarque e desembarque de passageiros. A cidade, que progredia a olhos vistos, tem, nesse ano, seu nome alterado de Constituição para Piracicaba, por petição do vereador Prudente de Moraes (depois presidente da república). O rio já tinha esse nome desde muito tempo, devido seu magnífico salto, onde “o peixe para.” Terra de dois barões, o Barão de Serra Negra, piracicabano, fazendeiro de café, e o Barão de Resende, natural do Rio de Janeiro, fazendeiro e industrial de cana-de-açúcar, Piracicaba vai aos poucos se convertendo em pólo econômico e cultural.
A Cia. Ituana de Estrada de Ferro constrói nova estação em 1885, à margem direita do córrego Itapeva. Dois anos depois, um jornal da cidade festeja o fato de a Ituana mandar construir, junto do novo prédio, “um gabinetezinho onde empregados e passageiros podiam se recolher por momentos para um serviço íntimo, sem a necessidade de procurar uma moita próxima.” Iluminava a estação uma lanterna miserável, que fornecia luz de uma banda só, dando ao ambiente aspecto fúnebre e apavorante. De certa feita, em janeiro de 1888, uma escolta policial, que conduzia no trem escravos capturados, é atacada por populares que resolveram soltar os cativos. Na confusão que se forma, aproveitam os detidos para fugir, correndo incólumes pelos trilhos.
Cana-de-açúcar foi a primeira cultura agrícola economicamente explorada na freguesia de Piracicaba. Até 1799, havia nove engenhos na região. Nicolau Pereira de Campos Vergueiro (Senador Vergueiro) adquire enorme sesmaria, de nome Morro Azul, nas margens do rio Piracicaba e nela implanta o Engenho do Limoeiro em 1807. Em sociedade com o Brigadeiro Luiz Antônio o senador incorpora ao seu patrimônio as fazendas Taquaral e Monte Alegre, esta adquirida do padre Manoel Joaquim do Amaral Gurgel, dono de extensas terras na região. Com a morte do brigadeiro, em 1819, a sociedade Vergueiro & Sousa é desfeita, e com o casamento da viúva dele, Genebra de Barros Leite, com José da Costa Carvalho (Marquês de Monte Alegre), as terras do Monte Alegre, Taquaral e outras mais passam ao domínio do marquês, que com elas e com outras que adquire originam o Engenho Monte Alegre. Outros engenhos do marquês, como Limoeiro e Monte Olimpio, também passaram a produzir açúcar e aguardente.
Fazenda Monte Alegre (1850), óleo sobre tela de Henrique Manzo, Museu Paulista, USP. |
Em 1819, Monte Alegre foi avaliada em 10:822$160 (dez contos, oitocentos e vinte e dois mil cento e sessenta réis), ou aproximadamente 15 kg de ouro de 22 quilates (1:000$000 = 1,4 kg de ouro), tendo 24 escravos, engenho, casa de purgar, senzalas, monjolo, olaria para telhas, alambique, três caldeiras, duas rocas, dois novilhos e dois bois. A produção de açúcar nos engenhos em 1822 era de 1.000 arrobas de açúcar branco e 550 arrobas de açúcar redondo (de segunda classe); aguardente, milho, feijão e arroz também eram produzidos. Tempos depois, em 1887, a produção atingia entre 8.000 e 10.000 arrobas de açúcar. O empreendedorismo, a riqueza e o poder político permitiram a José da Costa Carvalho receber os títulos de Barão de Monte Alegre (1841), de Visconde de Monte Alegre (1843) e de Marquês de Monte Alegre (1854); faleceria logo depois, em 1864.
Em 1889, uma sociedade se forma e o Engenho Monte Alegre é remodelado; tinha área de 2.228 hectares, sendo 500 ha plantados com cana, 622 ha prontos para o plantio e 856 ha de mato. Em 1910, o engenho é comprado pelo italiano Pedro Morganti (Comendador) em sociedade com José Pugliese, que o modernizam e o incorporam à Companhia União dos Refinadores, do Açúcar União, por eles criada. Dezenas de casas de colonos são construídas; uma escola, de bela arquitetura, é criada em 1927 em prédio da usina, para atender os filhos dos colonos, e uma magnífica capela é erigida em um outeiro.
A cana-de-açúcar era a vocação de Piracicaba; mas nem todos que nela viviam pensavam dessa maneira. De família abastada, de produtores de açúcar, nasce em Constituição, no ano 1822, Francisco José da Conceição. Fazendeiro de café e de algodão na cidade, dono de várias fazendas no interior da província de São Paulo, introduz o arado em suas propriedades e novos equipamentos para o beneficiamento de café. Em 1850, adquire a fazenda “Nossa Senhora da Conceição” em Jundiaí, produtora de cana-de-açúcar desde 1810, que passa a produzir café em grande escala, em seus três mil alqueires de terra, plantados com 350.000 pés de café, tendo 108 escravos negros. Após ter recebido o Imperador Dom Pedro II e a Imperatriz Thereza Christina, Francisco José da Conceição recebe, em 1871, o título de Barão de Serra Negra. Uma das filhas do barão casara-se com o futuro Barão de Resende, unindo, assim, suas fortunas e poderes políticos.
Em 1880, chegam os primeiros imigrantes italianos para trabalhar com café na fazenda, convivendo, assim, com escravos africanos, que seriam libertados oito anos depois. A região montanhosa de Jundiaí tinha clima favorável à viticultura, o que levou os italianos a produzirem uva e a fabricarem vinho na propriedade. Com a crise do café na Bolsa de Nova York em 1929, a produção de café na fazenda é substituída pela de uva e de vinhos, tornando-a, em pouco tempo, uma das maiores produtoras em todo o Estado de São Paulo. Superada a crise, a fazenda volta à produção de café e de outros produtos.
Se algum extraterrestre sobrevoasse Constituição (já que os aeroplanos só seriam inventados no inicio do século XX) o que ele viria seria um “mar de cana”. Culta e empreendedora, a vila (depois cidade) não se contaminara tanto pela febre do café. Assim, nas primeiras décadas do século XIX havia 51 engenhos, todos na margem esquerda do rio, e apenas 21 fazendas onde o café era produzido em pequena escala. Em 1836, o número de engenhos passara para 78, superado em número apenas por Campinas (83) e por Itu (93); Constituição estava entre as vilas que mais produziam açúcar para exportação na província paulista (cerca de um quinto da produção).
Tinham terras em Piracicaba alguns dos homens mais ricos e influentes da província de São Paulo, dentre os quais: José da Costa Carvalho (Marquês de Monte Alegre), abastado senhor de engenho; Francisco José da Conceição (Barão de Serra Negra), produtor de café em Jundiaí; Nicolau Pereira de Campos Vergueiro (Senador Vergueiro), senhor de engenho e cafeicultor; Luiz Antônio de Sousa Queiroz (Brigadeiro Luiz Antônio), que tinha 16 engenhos, sendo um dos homens mais rico do Brasil, e seus filhos Vicente de Sousa Queiroz (Barão de Limeira) e Luiz Antônio de Sousa Barros (Comendador), este senhor de engenho e produtor de café.
Com a morte do Brigadeiro Luis Antônio em 1819, uma vastidão de terra foi por ele deixada em Piracicaba, motivo da vinda de seus descendentes para esta cidade, inclusive seu neto Luis Vicente de Sousa Queiroz, o criador da Esalq. A mulher que deixara viúva, Genebra de Barros Leite, casa-se, em segunda núpcia, com José da Costa Carvalho, Marquês de Monte Alegre, sem deixar descendência. Uma das filhas do Brigadeiro Luis Antônio, Ilidia Mafalda de Sousa Queiroz, casou-se com Estevão Ribeiro de Resende (Marquês de Valença), de quem nasceu Estevão Ribeiro de Sousa Rezende (Barão de Resende) de quem tratarei em seguida.
Iniciava-se o ano de 1881 quando uma representação, assinada por vários munícipes, é lida na Câmara de Vereadores de Piracicaba. O texto trazia uma ideia revolucionária para a época: a de mecanizar a produção de açúcar, diminuindo a necessidade de mão de obra, que deveria ser não mais de escravos e, sim, de imigrantes assalariados. A ideia alicerçava-se na Lei Geral do Brasil No. 2687, de 11/1875, que autorizava o governo a garantir juros de 7% ao ano, até o capital de 30 contos de réis, às companhias que implantassem engenhos centrais para fabricação de açúcar, empregando aparelhos e processos modernos, com mão de obra livre, assalariada. Os engenhos centrais representavam a revolução industrial do açúcar e do álcool no Brasil, modernizando também o transporte de cargas, substituindo a tração animal por trens movidos a vapor, e a mão de obra escrava por imigrantes vindos principalmente da Itália.
Aprovada a representação, coube ao advogado Dr. Estevão Ribeiro de Sousa Rezende, nascido no Rio de Janeiro em 1840, filho do Marquês de Valença, radicado que estava na cidade, onde foi vereador por vários mandatos, a criação do Engenho Central. Para isso, o empresário cedera terreno da sua fazenda “São Pedro”, situada na margem direita do rio Piracicaba, e entrara com capital de 400 contos de réis.
Com equipamentos importados da França, o engenheiro mecânico francês André Patureaux ficou encarregado das obras. Em 1882, decidiu-se pela construção de uma via férrea própria do Engenho Central, margeando o rio Piracicaba, partindo da cidade no sentido do canal Torto, que era o ponto terminal dos vapores da Companhia Fluvial Paulista, fundada por Estevão Ribeiro, e que operava no transporte pelo rio desde 1873. Em outubro de 1882, o complexo e moderno mecanismo do engenho entra em operação, com o trabalho de numerosos imigrantes portugueses, italianos, sírio-libaneses e franceses.
Após ter hospedado o Imperador Dom Pedro II em 1886, Estevão Ribeiro de Sousa Rezende foi por ele agraciado com o titulo de Barão de Resende (1887). No ano seguinte abolia-se a escravatura e em 1889 tinha fim o Império brasileiro, com a Proclamação da República, quando as províncias passam a ser estados.
A grandiosidade do engenho logo começa a apresentar problemas pela falta de matéria prima e de mão de obra especializada para operar o moderno maquinário importado, de difícil manutenção. Dezessete anos depois de criado, o Engenho Central é vendido para a Société de Sucrerie de Piracicaba (incorporada depois à Société de Sucreries Brésiliennes, criada em 1907), que o transforma no maior engenho do Brasil, elevando a produção anterior, que era de 40 mil sacas de açúcar (160 mil arrobas) em 1889, para 100 mil sacas (400 mil arrobas) em 1899, e três milhões de litros de álcool. Na virada do século, o engenho transformara-se na maior usina de açúcar e álcool do Brasil e Piracicaba a maior produtora de açúcar da América Latina, com suas duas grandes usinas Engenho Central e Monte Alegre.
De 1881 a 1890, o açúcar representava apenas 6,1% das exportações brasileiras, sendo, assim, a maior parte consumida internamente. “Assucar não se faz na fábrica, como se pensa; assucar se faz na lavoura e extrahe-se e crystaliza-se na fabrica”, dizia um relatório da época.
O antigo sistema rural gerado pela cana-de-açúcar começa a mudar com a industrialização de São Paulo. Os obsoletos engenhos de açúcar e aguardente cedem lugar para os engenhos centrais, de açúcar e álcool, que, pelos problemas apresentados, começam a desaparecer na primeira década do século XX, cedendo lugar para as usinas de açúcar e álcool. Diferentemente do engenho, o processo de fabricação do açúcar na usina tinha maior rendimento, usava moendas extratoras de grande capacidade, evaporava o caldo a vácuo e obtinha açúcar com menos impurezas.
Mas as mudanças iam muito além da tecnológica. As usinas passam a integrar atividades agrícolas e industriais, empregam mão de obra assalariada, de imigrantes, e compram a produção de colonos, agora chamados fornecedores de cana. A figura dominante do senhor de engenho passa a ser feita pelo usineiro, empreendedor, urbanista e de grande influência política, social e econômica. O colono do Engenho Central, assim como das outras usinas da Société Sucrérie Bresiliénne, planta a cana, roça o mato, colhe, transporta e entrega o produto nos vagões da estrada de ferro, recebendo pagamento em função da cotação do açúcar na cidade de São Paulo. Porém, tinham de pagar aluguel pelo terreno da usina que ocupavam, cujo preço variava de 30$000 a 80$000 por alqueire (uma tonelada de cana era vendida por 8$000). Com a crise do café nos últimos anos do século XIX e inicio do XX, as usinas passam a atrair grande número de imigrantes, principalmente italianos. A presença deles em Piracicaba datava de 1877, quando, pelo censo, constatou-se haver 1.660 imigrantes vindos da Itália, ocasião em que fundaram a Societá Italiana di Mutuo Soccorso, de ajuda ao imigrante recém chegado.
As construções antigas do Engenho Central começam a ser substituídas por outras maiores e mais funcionais, de alvenaria aparente, na segunda década do século XX, assim permanecendo até hoje. Foi desativado em 1974, sendo reconhecido como patrimônio histórico.
Rio Piracicaba em 1917, com vista do Engenho Central, na margem direita, e a Casa do Povoador, na margem esquerda. Aquarela de Joaquim Miguel Dutra. |
Continua.
Referências.
MARCONDES, N. (edição Tais Romanelli). Na trilha do passado paulista – Piracicaba Século XIX – Fazendas, Engenhos e Usinas Engenho – Usina Monte Alegre
ELIAS NETTO, C. Monte Alegre: glória, queda e renascimento. Memorial de Piracicaba - Almanaque 2002-03.
PASCHOAL, A.D. História de uma família. Genealogia à luz da história. Tomo II. Séculos XIX e XX. 403 p. Piracicaba, 2010.
PREFEITURA MUNICIPAL DE PIRACICABA. O Engenho Central na história do Brasil e da cidade de Piracicaba. Secr. Mun. Com. & Mark. s/d.
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