Pesquisar neste blog

quinta-feira, 3 de junho de 2021

AGRICULTURA FAMILIAR. I Parte 1. Modelo autossustentável para o agricultor familiar, desenvolvido na esalq: descrição do projeto.

 Adilson D. Paschoal 

Professor Titular-Sênior da Esalq-USP 


Trabalho elaborado em homenagem aos 120 anos da Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz”, Universidade de São Paulo, e à memória de seu idealizador e criador Luiz Vicente de Sousa Queiroz, exemplo de dedicação e determinismo por uma causa que não viu concluída senão em seus sonhos. 


Histórico do projeto. 

O ano era 1989. Em aula da disciplina optativa de Agroecologia e Agricultura Orgânica (a Esalq foi a terceira escola pública a ter disciplina dessa natureza, depois de Kassel, na Alemanha, e Wageningen, na Holanda) ministrada na Esalq-USP pelo autor deste artigo, comenta um aluno, depois de saber serem poucas as opções que ele e os outros mais de cinquenta de seus colegas tinham de excursões a propriedades agrícolas orgânicas, raras na ocasião: 

— Professor! Por que então não criamos aqui na Esalq uma área de agricultura orgânica onde as práticas agroecológicas possam ser demonstradas, servindo para as aulas práticas? 

Assim foi que, por iniciativa discente e muita pesquisa preliminar, surgiu o projeto que primeiro chamei Unidade de Tecnologias Integradas (UTI), que logo tive de mudar por uma razão singular e cômica. Como a unidade foi montada na Fazenda Areão, de propriedade da Esalq, ficando ela bem distante da minha sala do Departamento de Zoologia, um dia a secretária recebe um telefonema de alguém que desejava me falar: 

— Bom dia. É do Departamento de Zoologia? 

— Sim. 

— O professor Paschoal está? 

— Não. Ele está na UTI. 

— Que?... 

Para evitar novos mal-entendidos, a unidade passou a ser Unidade Autossustentada de Agricultura Orgânica (UAS), implantada em outubro de 1990, primeiro como Horta Orgânica Biocinética, de ensino, pesquisa e extensão, destinando-se as hortaliças para consumo dos restaurantes da Esalq e, depois, com verba do Ministério do Meio Ambiente e da Amazônia Legal e com doações da Fapesp (bolsas de estudos), da Secretaria de Agricultura de São Paulo (sistema de irrigação), da Esalq (área, microtrator, ônibus para transporte dos alunos etc.) e de firmas particulares (Fundação Mokiti Okada, principalmente) como unidade autossustentada para agricultores familiares. O projeto foi desenvolvido com a participação dos alunos da disciplina e de bolsistas e estagiários, no período de 1990 a 2003, continuando nos anos seguintes, após a minha aposentadoria, sob a responsabilidade dos professores Dalcio Caron e Carlos A. Khatounian, com a participação ativa do Grupo Amaranthus de Agricultura Orgânica. 

Objetivos do projeto

A ideia central da unidade era criar um modelo de agricultura sustentável para o agricultor familiar, com o qual uma família de quatro pessoas (casal e dois filhos adultos) pudesse produzir alimentos para si e para venda do que produzisse, de forma a depender muito pouco de aportes externos, visando, assim, a autossuficiência, bem como a produção agrícola em consonância com a natureza, conservando os seus recursos. Modelos como esse, de análise holística, i.e., de avaliação do sistema agrícola como um todo, e não apenas de suas partes (reducionista) não existiam na ocasião, como são raros até no presente, daí as dificuldades iniciais de como avaliá-lo. A solução encontrada foi adaptar um modelo de balanço energético que existia apenas para ecossistemas naturais. Em sistemas biológicos, o todo é muito mais do que a simples soma de suas partes, daí a razão da natureza holística do projeto. 

Partindo do pressuposto que para se nutrirem adequadamente as pessoas (no caso a família do produtor rural) necessitam de proteínas, hidratos de carbono, lipídeos, vitaminas e sais minerais, estabeleceu-se como prioridade a produção de ovos, carne, leite, peixe, hortaliças, frutas, cereais e leguminosas (fabáceas). Como área padrão, definiu-se que seria de um hectare, possível de ser ampliada pela natureza modular do sistema produtivo. Autossuficência seria possível integrando-se todas as atividades econômicas, de forma a que uma dependesse e completasse a outra, daí a denominação primeira de Unidade de Tecnologias Integradas (UTI), que foi seu grande diferencial. Reciclagem de nutrientes, otimização do fluxo de energia (eficiência energética) e estabilidade pela biodiversidade foram outros princípios agroecológicos postos em prática. 

Definição das prioridades 

Para a área padrão de um hectare definiu-se como atividades econômicas principais, de valor comercial maior, a produção de ovos orgânicos (“caipiras”) e de hortaliças orgânicas. Como atividades complementares às econômicas e necessárias para as suas concretizações e integrações, estabeleceram-se: uma área para a produção de grãos orgânicos (milho, cereais de inverno, leguminosas); um minhocário, para a produção de húmus (vermicomposto) e de minhocas; um pátio de compostagem, para a elaboração de composto orgânico e um tanque para a irrigação da horta e criação de peixes e patos.



Para a área padrão de um hectare definiu-se como atividades econômicas principais, de valor comercial maior, a produção de ovos orgânicos e de hortaliças orgânicas. Esquerda: vista dos galinheiros, com o galpão de galinhas em pré-postura à esquerda e o galinheiro de poedeiras à direita, Direita: vista interna do galinheiro de poedeiras, com aves da raça Label Rouge negra. Fotos do autor, 1997

Para consumo da família, implantou-se um pomar orgânico, para a produção de frutas o ano todo; um cabril, com cabra para a produção de leite; um canteiro elevado, para a produção de plantas medicinais e condimentares; e uma área de reflorestamento (Saf), para a produção de moirões e de lenha, servido ainda como quebra-vento, barreira física e abrigo e alimento para a avifauna e polinizadores. 

Integração das atividades produtivas

A integração realiza-se de forma simples, complementando-se atividades agrícolas com atividades pecuárias, de modo a que uma atenda e complete as necessidades da outra. Diversidade, integração e reciclagem são os mecanismos mais importantes para se conseguir sustentabilidade.

Galinheiros

 As galinhas pastejam livremente em quatro pastos de capim quicuio (Braquiaria humidicola) e capim “cost-cross” (Cynodon dactylon), cercados por alambrados, sendo duas pastagens para galinhas em pré-postura e duas para galinhas em postura. Separados por porteiras, permitem fazer-se rodízio e o trabalho útil da cabra e cabritos em melhorá-los; por serem ruminantes (poligástricos), os caprinos podem aproveitar a vegetação mais grosseira dos pastos, deixando a rebrota mais rica em proteínas para as galinhas, que são monogástricas. Feijão guandu, plantado em todo o perímetro dos galinheiros, fornece folhas e vagens ricas em proteína para as aves, que também recebem material descartado da horta (folhas, raízes, tubérculos, frutos etc.). Recebem, ainda, milho e cereais de inverno da área de produção de grãos e farinha de minhoca (tão rica quanto a farinha de peixe), obtida por desidratação e moagem de minhocas criadas no minhocário.

Horta

A horta recebe vermicomposto (húmus de minhoca), mais adequado para culturas de ciclo curto, como são as hortaliças, por ser o produto mineralizado pelo trabalho dos vermes, os nutrientes sendo prontamente absorvidos pelas raízes. Além disso, o vermicomposto contém matéria orgânica agregadora de solo e meio de existência para a biota edáfica útil, caso das bactérias fixadoras de nitrogênio, dos fungos micorrízicos e dos microrganismos de vida livre produtores de vitaminas, de hormônios e de outros compostos úteis às plantas. Refugos de verduras e legumes alimentam parcialmente as aves e os caprinos, que, por sua vez, fornecem estercos para a produção do vermicomposto.



A horta recebe vermicomposto (húmus de minhoca), mais adequado para culturas de ciclo curto, como são as hortaliças, por ser o produto mineralizado pelo trabalho dos vermes, sendo os nutrientes prontamente absorvidos pelas raízes. Além disso, o vermicomposto contém matéria orgânica agregadora de solo e meio de existência para a biota edáfica útil, Esquerda. Horta orgânica biocinética, vendo-se ao fundo o cabril. Direita. Alunos trabalhando na horta. Fotos do autor, 1997.




Área de produção de grãos orgânicos

A área (5.000 m²) foi dimensionada para atender, prioritariamente, à demanda das galinhas. O solo, inicialmente pobre (Cambissolo B textural com cascalho), foi progressivamente recuperado com calcário, fosfato de rocha, adubações orgânica e verde, curvas de nível e terraços. Depois de alguns anos, a porcentagem de saturação de bases (V%) foi elevada, variando de 67% a 75%, eutróficos, portanto. A variedade de milho escolhida foi Opaco 2 por ser rico em metionina e triptofano, aminoácidos necessários às poedeiras, presentes em quantidade insuficiente na farinha de minhoca. O milho foi consorciado com mucuna-preta (capaz de diminuir populações de nematoides) e abóbora, e, ao longo do tempo, com outras leguminosas (feijão, feijão-de-porco, crotalárias etc.). Culturas de inverno foram experimentalmente plantadas para alimentar as aves, como o triticale e o grão-de-bico. Aveia preta (Avena strigosa) foi utilizada como forragem e para a cobertura do solo no inverno, reduzindo a infestação de plantas invasoras e melhorando as características do solo. 

Nota: No próximo artigo (Parte 2) descreverei como são as instalações e quais foram os resultados obtidos.



Projeto de 1994 da Unidade Autossustentada de Agricultura Orgânica. Desenho do autor, 1994.


Referências:

PASCHOAL, A.D. Ökolosische und öconomische Last der industriell betribenen Landwirtschaft in Brasilien. Hamburg: Lateinamerika, 1985.

PASCHOAL, A.D. Sustainable Agriculture. A world-wide growing concern and reality. Proceedings, 2nd International Conference on Kyusei Nature Farming, Piracicaba: 1991.13-17.

PASCHOAL, A.D; PASCHOAL,.D.P.D. A model of sef-sustained nature farming system suitable for small-holders in Brazil. Proceedings, 6th International Conference on Kyusei Nature Farming. Pretoria: South Africa, 1993.

PASCHOAL, A.D. Produção orgânica de alimentos. Agricultura sustentável para os séculos XX e XXI. Piracicaba: 1994, 191p.

PASCHOAL, A.D. Modelos sustentáveis de agricultura. Agricultura Sustentável-Embrapa. Jaguariuna, 2(1),11-16, 1995.

PASCHOAL, A.D. Projeto de viabilidade sócio-econômica para o assentamento de 40 familias de agricultores no município de Bastos, SP. Projeto Casulo “Vida no Campo”, Incra-Prefeitura Municipal de Bastos, 2001, 31p.