Adilson D. Paschoal
Professor Sênior da Esalq-USP
Século XIX. Segunda metade. Razões da imigração italiana. Os loiros do Norte e os “braccianti” do Sul. Uma viagem temida, nos porões de navios. Tragédia a bordo. Porto de Santos. Razões da imigração espanhola.
Desde 1887, com fugas em massa de escravos, os fazendeiros paulistas, especialmente da Alta e Média Mogianas (antigo Oeste Novo), foram substituindo os cativos por imigrantes, principalmente italianos, cujas primeiras famílias vieram para São Paulo em 1870. A tentativa anterior, de imigração europeia de alemães e suíços, para trabalharem na fazenda Ibicaba e outras da região, entre 1840 e 1856, falhara devido ao sistema exploratório de parceria. Até 1887, cerca de 70 mil imigrantes haviam sido empregados em estabelecimentos agrícolas de São Paulo, número esse superior ao dos 50 mil escravos que trabalhavam nas fazendas paulistas. O número de pés de café passara de 221 milhões em 1888 para 685 milhões em 1902.
Enquanto em São Paulo a economia e a agricultura iam bem, exigindo mão de obra abundante e barata para trabalho no campo, na Itália, pelo contrário, tornara-se desastrosa, com crise econômica sem precedente. Pouco antes do início da grande emigração, em 1870, a Itália ainda era um conjunto de pequenos estados, alguns independentes, outros sob o domínio estrangeiro. Sob o reinado de Vítor Emanuel II forma-se a Nação-Estado, saindo derrotados os partidários de esquerda, republicanos e democratas, que militavam sob Giuseppe Mazzini e Giuseppe Garibaldi. A unificação, iniciada pelo Conde de Cavour, só se completaria em 1870. Desde então, o país passa por período de caos econômico (desemprego e inflação) e político (ausência de lideranças legislativas). A população, particularmente a rural, mais pobre, tinha dificuldade de sobreviver em suas pequenas propriedades ou naquelas em que trabalhava. O mesmo ocorria nas cidades. A emigração passa a ser estimulada; para muitos era emigrar ou ficar e morrer de fome. Sete milhões de italianos deixam o país entre 1860 e 1920.
Desde a Lei Áurea, de 13 de maio de 1888, que extinguiu a escravidão no Brasil, agentes brasileiros percorriam o norte da Itália arregimentando agricultores para trabalho nas lavouras de café. O ouro negro cria aí febre parecida com aquela do ouro verdadeiro, que levara tantos imigrantes europeus para Minas Gerais. No anseio de logo partirem, algumas famílias chegavam a viajar a pé, cruzando a maior parte do norte da Itália, sob rigoroso inverno, para tomar os navios que, em Gênova, prometiam passagens gratuitas para Santos. As passagens eram financiadas, assim como os alojamentos e o trabalho inicial na lavoura. Contratos eram firmados, estabelecendo o local e as condições de trabalho. Estimulava-se a vinda de famílias e não de indivíduos isolados e, por isso, vinham homens, mulheres e crianças, todos com a obrigação de trabalhar.
Os primeiros emigrantes que deixaram a Itália eram do norte do país, das regiões de Vêneto e Lombardia. Tratava-se de pequenos proprietários, arrendatários ou meeiros, para quem a possibilidade de acesso a terra no Novo Continente constituía forte estímulo à emigração. Eles eram mais loiros do que a maioria dos italianos e isso interessava também à política brasileira, que preconizava o “branqueamento da raça”, para melhorar a imagem do país no exterior. Os navios partiam principalmente de Gênova.
Depois vieram os italianos do sul, principalmente das regiões de Calábria, de Campânia e de Basilicata. Os italianos do sul eram morenos, mais pobres e rústicos, geralmente camponeses que não dispunham de nenhuma economia; chamavam-nos de “braccianti” (trabalhadores braçais que ganham por dia). Os navios partiam principalmente de Nápoles. Era voz corrente em São Paulo que tinham sido os imigrantes do norte os que haviam sugerido aos agentes da imigração italiana a vinda dos “braccianti”, com a finalidade de vingarem suas filhas e mulheres.
Encantados pelas suas belezas natas, os fazendeiros paulistas e seu filhos varões quiseram fazer com elas o que faziam com suas escravas, daí a justificada revolta.
Certa tarde, na casa rústica dos Di Paschoal, na pequena vila de Albini, próxima de Morano Calabro, comuna do mesmo nome, na Província de Cosenza, região meridional italiana e central da Calábria, o jovem Giuseppe Donnadio Siloburo Di Paschoal, então com mais de vinte anos de idade, depois de muito conjeturai com seu pai Paschoal e sua mãe Giovana Pasta, toma a importante decisão de emigrar para o Brasil. A família, que tinha pequeno negócio no pobre vilarejo, passava por muitas dificuldades financeiras, motivadas pela crítica situação econômica do país. Os jovens viviam sob constante ameaça de não terem terras para cultivarem, impedimento sério para quem pensava em constituir família. Sob clima montanhoso e árido, com frequentes e arrasadores terremotos, a agricultura camponesa do vilarejo vivia da produção de oliveiras, para extração de azeite, e de castanhas e frutas, principalmente uva, para o fabrico de vinhos. Sem dinheiro, os camponeses não podiam comprar as mercadorias comercializadas pela família Di Paschoal. Outra alternativa não havia senão emigrar.
Se outra possibilidade não havia, pelo menos o bem estar do jovem Giuseppe na América era a preocupação maior de seu pai:
— ... il Brasile produce uva per fare vino di buona qualità? — inquire o progenitor, condicionando, de certa forma, a emigração do filho, pois vinho não podia faltar à mesa italiana.
— Mi è stato detto di si, in Sao Paulo, sulle colline — responde Giuseppe, tentando convencer o pai; pelo menos nas colinas de São Paulo se produzia a uva...
Centenas de jovens já haviam deixado a Calábria desde 1870. Notícias correntes davam conta de que dessa região e da vizinha Basilicata, muitos tinham ido para São Paulo “fazer a América”, como se dizia. Embora as notícias fossem desencontradas, parecia que nada podia ser pior do que ficar na dulce Italia de seus antepassados, principalmente na Calábria, uma das regiões mais pobres do país. Sem vocação para a agricultura e já de certa idade, os Di Paschoal não tinham o perfil desejado para os cafezais paulistas. Mas se o dinheiro corria fácil no Brasil, devido ao café, por que não poderia ser bem sucedido um empreendimento comercial? Já velhos, eles não tinham condições de enfrentar o desconhecido; mas não Giuseppe, que trazia em si a força e a coragem da juventude. Com as economias que fizera, põe em ação o seu plano, e ruma para Nápoles.
Após atravessar as regiões montanhosas e secas da Calábria e da Basilicata, e toda a região de montanhas e vulcões da Campânia, Giuseppe chega a Nápoles. Impressiona-o a beleza da baía e a magnífica visão do Vesúvio. O vapor que o levaria para o Brasil partiria no dia seguinte.
No cais, uma multidão de emigrantes espera pelo embarque. Suas passagens eram subvencionadas pelo governo brasileiro ou por fazendeiros paulistas. Não era o caso de Giuseppe. Quando o navio se põe a largo, saudando com repetidos apitos a pátria que deixa, Giuseppe não pode conter as lágrimas; com o braço timidamente erguido, responde aos acenos que vêm do cais, mas que não são de seus entes queridos, que deixa para trás e para sempre.
O navio em que segue viera do porto de Gênova, trazendo muitos outros imigrantes para o Brasil. Em sua rota, passa por Palermo, na Cecília, e Lãs Palmas, na Ilhas Canárias espanhola, onde embarcam outros passageiros, inclusive Joanna Gonçalves Delgado, com quem se casaria no Brasil.
A viagem na rústica embarcação é cansativa. Giuseppe e os outros emigrantes, que durante toda a longa travessia se aglomeravam à noite nos porões do navio, mal iluminados e ventilados, onde o barulho incessante dos motores perturba o sono, fazendo muitos adoecerem e mesmo morrerem, e de dia se acotovelavam nos conveses a fim de respirar ar puro, não viam a hora de chegarem ao destino. A esperança de melhores dias suplantava qualquer dificuldade.
A monotonia no convés, do rugir das ondas no costado, que a quilha do navio ia formando no singrar o mar bravio, é quebrada um dia pelo choro lamentoso de uma mulher, que perdera o filho aquela noite; envolto em mortalha branca, o pequeno corpo da criança aguardava ser atirado ao mar, sepultura de todos que morriam a bordo. Giuseppe reconhece-a, lembrando-se de tê-la perguntado sobre a criança na noite anterior: “Por que chora o teu menino?” “Como posso ajudar-te? A resposta fora breve, de quem muito sofria: “Meu filho está doente”. “Tenho medo que morra”. Tentando consolá-la, embora sabendo da gravidade da situação, Giuseppe só pode dizer a ela o que dissera sua mãe a ele, na despedida: “Não tenha medo. Estamos todos bem aqui.” E para confortá-la: “Logo chegaremos ao Brasil.”
— Scusi, signora. Per che piange tu bambino? Come posso aiutarte?
— Mio figlio è malato. Anchio ho paura que muoia.
— Non habete paura! Stiamo tute benne chi. E poi, dobbiamo arrivare presto a Brasile.
Passados sessenta longos dias o navio finalmente atraca em Santos. O desembarque de passageiros é rápido; haviam chegado ao Novo Mundo, um mundo de novas esperanças. Na alfândega, o comandante do navio deixa a lista de bordo e a lista de desembarque, com a relação dos passageiros e informes sobre o navio e sua tripulação, o número de pessoas embarcadas, com nome, idade, estado civil, profissão, sexo, religião, instrução, porto de embarque e residência declarada de cada um, além do porto de procedência do navio e aqueles em que realizou escalas. Um a um os passageiros são identificados e em seguida liberados para viagem a São Paulo.
O porto impressiona os viajantes, pelo número de navios atracados; muitos vapores despejam passageiros e muitos veleiros e vapores recebem preciosas sacas de café, trazidas de muito longe, para serem levadas a lugares ainda mais distantes, na Europa e nos Estados Unidos. Trazidas por carroças do terminal férreo da “Inglesa” (São Paulo Rayway), as sacas são levadas nas costas de carregadores, homens livres, brancos em sua maioria, em fileiras contínuas, tal qual saúvas levando folhas aos sauveiros.
Por razões parecidas, também vieram da Espanha muitos imigrantes, inclusive das Ilhas Canárias, parada obrigatória dos navios italianos que sempre aí aportavam antes de chegarem ao Rio de Janeiro e Santos.
A crise política-econômica na Espanha, assim como em toda a Europa, ocorrida na segunda metade do século XIX, com superpopulação e elevado número de desempregados e desocupados nas cidades e no campo, e a grande demanda de mão de obra para os cafezais paulistas, levaram à emigração. Epidemias de doenças agrícolas e de pragas da agricultura, que prejudicaram sobremaneira as vinhas espanholas, fizeram com que o governo buscasse países que pudessem oferecer melhores condições para os seus cidadãos. O Brasil é escolhido. Em 1865, o fluxo migratório, em particular para São Paulo, estava regularizado, o que fez com que muitos pequenos agricultores das regiões de Andaluzia, Galícia, Catalunha e Ilhas Canárias viessem trabalhar nas fazendas de café de São Paulo.
A migração espanhola é a que traz famílias mais numerosas, só superada em número de imigrantes pelos italianos e portugueses. Os espanhóis fixam-se em sua maioria no Estado de São Paulo, onde, com o tempo, adquirem pequenas propriedades rurais. Muitos não chegam a sofrer as agruras do labor agrícola, dirigindo-se antes para centros urbanos, onde se dedicam ao comércio de comestíveis, de metais usados (ferro velho), de hospedaria, e aos ofícios de carpintaria, sapataria, alfaiataria e trabalhos domésticos.
Continua.
Referência.
Paschoal, A.D. História de uma família. Genealogia à luz da história. Tomo II. Séculos XIX e XX. 403 p. Piracicaba, 2010.
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