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terça-feira, 27 de novembro de 2018

Aspectos Históricos da Agricultura Paulista: Parte 2. Os primeiros engenhos


Adilson D. Paschoal
Professor Sênior da ESALQ-USP

Ano de 1532. Povoadores da Primeira Vila do Novo Mundo. Fundação de São Vicente. Aprendendo técnicas agrícolas com os Índios. Os primeiros engenhos de cana-de-açúcar. O açúcar passa a ser exportado pelo porto de Enguagaçu (Santos).


Passado um ano e dois meses de viagem, duas naus da esquadra de Martin Afonso de Sousa aportam na ilha de São Vicente, no dia 22 de janeiro de 1532, local em que o capitão-mor resolve estabelecer o primeiro núcleo de colonização, por já existir aí um povoamento, não existirem índios hostis e porque seria mais fácil a defesa contra possíveis ataques bugres vindos do continente. Em 1510, o degradado português Mestre Cosme viera para São Vicente onde fundara um povoado fazendo fortuna com negócio de escravos indígenas, com troca de mercadorias entre índios e moradores, e com suprimentos e água para navios que aí aportavam em direção ao rio da Prata e ao Paraguai. Já havia nesse lugar doze casas de taipa, muitas ocas, armazém, embarcações, uma pequena torre de pedra para defesa e um porto, chamado das Naus, para embarcações de grande calado.

Naus portuguesas aportam em São Vicente, no porto das Naus, no dia 22 de janeiro de 1532, trazendo para o Brasil os primeiros colonos e mudas de cana-de-açúcar. Porto das Naus. Óleo de Benedito Calixto, Prefeitura de São Vicente.

Em Bertioga, Antão e seus amigos fidalgos a serviço do rei ajudam na construção de um forte, e, em São Vicente, iniciam a primeira vila do Brasil, cujas moradias são construídas usando-se materiais que aí abundavam: madeira, barro e sapé. Poucos dias depois do desembarque em Bertioga, temem pelas suas sortes.
Subitamente, à frente deles, trezentos a quinhentos índios armados de arco e flecha, pintados para a guerra, de negro de jenipapo e vermelho de urucum, posicionam-se em atitude ao mesmo tempo hostil e de curiosidade. Armas são sacadas no forte. O conflito parece inevitável. De repente, de dentre os silvícolas, gritos se ouvem em língua que lhes era familiar. Um homem branco então se apresenta, a passos largos, dizendo que nada temessem, pois aqueles eram índios amistosos. Mal crendo no que ouviam e viam, pois sempre acreditaram que naquelas plagas do mundo novo só existiam feras e bárbaros comedores de gente, os pioneiros deparam-se com o náufrago e judeu português João Ramalho e o sogro dele, o cacique Tibiriçá.

Os índios ─ foi-lhes dito depois ─ eram guaianazes, habitantes das planícies, menos perigosos do que os tamoios, e, da mesma forma que os carijós e os patos, não eram antropófagos. Ao contrário deles, não guerreavam em matas fechadas e não matavam seus prisioneiros, trazendo-os para suas aldeias onde os escravizavam. Disso aprenderam os portugueses quando precisaram de mão-de obra para as suas lavouras de cana e de subsistência, organizando as primeiras entradas à busca de índios. Os guaianazes viviam da caça, da pesca e de frutos da floresta; não faziam agricultura e por isso eram totalmente inadequados para as lavouras. Sem eles, porém, dificilmente os colonos teriam sobrevivido aos tupinambás. Não tinham ocas senão tocas cavadas no chão, servindo-lhes de cama
folhas cobertas por peles de animais caçados.

Fundação de São Vicente, junto à praia, onde já existia um pequeno povoamento. Óleo de Benedito Calixto, Museu
Paulista, São Paulo.


Meses se passam e a recém fundada vila de São Vicente, a primeira povoação em todo o novo mundo, cresce com as moradias de taipa, cobertas de sapé, algumas de telhas portuguesas, que os índios ajudam a construir, e as lavouras de cana-de-açúcar, que ajudam a implantar.

O trabalho no campo é árduo. Compactas matas, de árvores de grande porte, têm de ser derrubadas para o preparo da terra. Os portugueses aprendem com os índios a técnica da coivara, de derrubada seguida de queima e plantio nas cinzas.

Com as terras de sesmaria, que Pedro de Góis e José Adorno recebem, a cana-de-açúcar logo começa a produzir satisfatoriamente. Em 1532, Pedro de Góis estabelece o primeiro engenho de açúcar: o engenho Madre de Deus. Um ano depois, em 1533, José Adorno põe em operação o segundo deles, chamado Engenho São João. Ambos os engenhos foram implantados na ilha de São Vicente.

Passam a produzir açúcar, aguardente e rapadura já na primeira safra de cana, em 1533. A experiência de Antão Leme ajuda nesse mister, tendo ele também recebido terras de sesmaria, cultivadas com cana, culturas de subsistência e algum gado. Ao rei chegam as boas notícias vindas da Colônia, e, com elas, também muitos pedidos de terras.




Os primeiros engenhos de açúcar utilizavam mão de obra escrava indígena, depois substituída por mão de obra escrava africana. Ilustrações de autores desconhecidos.

Em meados de 1533, corre a notícia que Martim Afonso retornaria a Portugal. A incerteza quanto ao futuro da vila domina os colonos pioneiros, que viam partir, com as naus, as suas mais vivas esperanças. Martim reacende-lhes os ânimos, prometendo mandar outras frotas com mais engenhos e facilidades e, sobretudo, trazendo-lhes as esposas e os filhos. Antão Leme e os demais fidalgos povoadores não sabiam ainda que faziam parte da Capitania de São Vicente e que Martim Afonso era o seu donatário e governador. A notícia não havia chegado ao Brasil, informando que D. João III havia criado, em 1532, o sistema de capitanias hereditárias.

Nesse mesmo ano de 1533, graças a uma sociedade criada por Martim Afonso com o rico negociante flamengo João Veniste (Johan van Hielst), estabelece-se na capitania o terceiro engenho de açúcar, denominado do Senhor Governador, em terras férteis de Enguaguaçu (depois Santos). Três anos depois, em Enguaguaçu, o sertanista português Brás Cubas recebe a mais vasta sesmaria do litoral da capitania de São Vicente. Posteriormente, a sociedade se desfaz com a venda das instalações ao alemão Erasmo Scheter, quando passa a se chamar engenho São Jorge dos Erasmos. Tal benfeitoria seria adquirida mais tarde por Braz Esteves, fidalgo madeirense, administrador e técnico em açúcar e aguardente.

Muitos outros engenhos foram estabelecidos depois, passando a Colônia a exportar açúcar e a produzir aguardente e rapadura para consumo interno. Progredia, assim, rapidamente, a nova vila.

A ausência de Martim Afonso desestrutura completamente a vila de São Vicente. Semicivilizados portugueses e bárbaros silvícolas logo se misturam em mamelucos ainda piores e mais violentos. Escraviza-se o índio para trabalho na agricultura e nos engenhos. Entre os europeus predominam a crueldade e a desonestidade, faltando-lhes os mais elementares princípios de decência.

Logo após o retorno de Martim Afonso, São Vicente é atacada e destruída por hordas de indígenas e espanhóis comandados por Mestre Cosme, que, dessa forma, se vinga, por ter perdido tudo o que levara vinte anos para construir. Seus moradores fogem para Enguaguaçu, escapando a maioria com vida quase como que por milagre.

Em 1541, o porto de embarque de mercadorias é transferido de São Vicente para Enguaguaçu. A partir de 1543, o povoamento de Brás Cubas passa a se chamar Porto de Todos os Santos, tornando-se o segundo da Colônia. Em 1544, um terrível maremoto inunda São Vicente destruindo a casa do conselho, a igreja e o pelourinho. Perdida toda a documentação histórica, os camaristas de São Vicente passam a proteger mais os livros de atas. Desestimulados, muitos dos pioneiros mudam-se para a nova região, onde Brás Cubas constrói um hospital a que chama Santa Casa de Todos os Santos. Por ter posição mais favorável do que São Vicente, Santos dá novo alento à produção de cana, passando por aí todo o açúcar exportado, servindo também de refúgio aos vicentinos durante os ataques dos índios. Em 1545, a vila de São Vicente é transferida para local mais afastado do mar, junto ao morro de Santo Antônio.

Elevação do Porto de Todos os Santos à categoria de vila, em 1545, com leitura do foral de vila por Brás Cubas, junto ao pelourinho. Óleo sobre tela de Benedito Calixto, Museu dos Cafés do Brasil, Santos.

Por resolução da Casa do Conselho de São Vicente, dois juízes ordinários são nomeados em 1544, por voto direto, para os dois povoamentos. Para São Vicente é escolhido, pela sua autoridade, dedicação à vila que viu nascer, e pelo seu caráter íntegro, Antão Leme, que, dessa forma, torna-se o primeiro juiz da vila e, possivelmente, o primeiro do Brasil. Um ano depois, ele participa do ofício que eleva Santos à categoria de vila, por ato de Brás Cubas, nomeado o novo capitão-mor da Capitania de São Vicente.

Em 1549, Antão Leme vê, com muita esperança de finalmente se estabelecer a ordem em São Vicente e em Santos, a vinda ao Brasil do primo de Martim Afonso, Tomé de Sousa, como seu primeiro governador geral, embora sabendo que ele iria se estabelecer em local muito distante, em Salvador, na Bahia de Todos os Santos. É tal o seu entusiasmo que, finalmente, decorridos vários anos, pôde aconselhar o seu filho Pedro Leme a vir para o Brasil. Ele próprio voltara à ilha da Madeira, onde vem a falecer.

Continua.

Referência.
Paschoal, A.D. História de uma família. Genealogia à luz da história. Tomo I. Séculos
VIII a XIX. 430 p. Piracicaba, 2007.

Obs. “O Monumento Nacional Ruínas Engenho São Jorge dos Erasmos – Base Avançada de Pesquisa, Cultura e Extensão da USP – é um órgão da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária da Universidade de São Paulo, situado na divisa entre os municípios de Santos e São Vicente, no estado de São Paulo. É a mais antiga evidência física preservada da colonização portuguesa em território brasileiro e sua data de construção remonta a 1534.”

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